sábado, 16 de novembro de 2013


In memorian

É isso mesmo. Tudo tem um tempo certo de ser. Todos têm um tempo certo para ser. Um dia você acorda e de repente nada é mais como era. De repente, você abre os olhos e se descobre tendo um passado. Mais que isso! Que as pessoas de seu passado não existem mais, as casas foram vendidas, se perderam em meio a construções mais modernas e as ruas ganharam asfalto te deixando sem lugar de referência. Onde estão aquelas que podem dizer exatamente como você era em uma época em que não atinava para isso? Em que lugar se perdeu a imagem das praças e das árvores que povoaram seu imaginário e ajudaram a construir suas recordações, compondo momentos só seus? Só sobraram as fotografias que você, com os olhos marejados, fita comovido como a querer reviver o já vivido. Você até tenta voltar e resgatar o que fez parte de você, mas para onde, se o lugar não mais existe? Para quem, se a gente que povoava seu antigamente não está mais lá?

Contrariando as expectativas dos livros de autoajuda, você percebe que crescer é eternamente se adaptar ao que não mais existe, a quem não mais existe, aprendendo a lidar com as ausências que nada de novo é capaz de substituir... Aí, você aprende a caminhar com os vazios dessas presenças, e constata mesmo que seus patrimônios, com o tempo, se transformarão em ausências e saudades, ajudando a edificar um passado que cresce até você mesmo se tornar passado para si e para os outros.

A lei da vida só pesa, de fato, quando os patrimônios se tornam intocáveis, deixando uma lembrança que você tenta reter mais um pouco, mas que não consegue, porque o tempo se incumbe de fazê-lo esquecer. Com o passar dos dias e anos, tudo perde a nitidez e você entende o real significado da palavra saudade; as recordações se confundem, os sabores se misturam e você não sabe se tudo era exatamente do jeito que imaginara, porque sua memória não é mais a mesma. Muito se perdeu e você aprende a conviver com isso, à custa de muitos sorrisos que vão ficando pelo caminho.

A arte de abrir mão é cruel, mesmo que com ela, você amadureça a fim de recomeçar... com menos cor, sorrisos mais raros, alegrias mais contidas. A arte de abrir mão torna o ser humano mais prudente e resiliente, ao tempo em que o transforma em algo meio morno, meio outono, meio vivo mesmo.
Carolina Moraes
Feira de Santana, 12 de novembro de 2013

sábado, 5 de outubro de 2013


Continho de amor sozinho

Marianinha, vou-me embora! Cansei de ti, querida! Cansei destas casas, desses homens todos circulando em redor de nada, desse jardim sem propósito! Esse cheiro de casa, rotina, sonho programado. Preciso de tempo para ler meus livros! Além do mais, muito do que venho escrevendo ainda está por terminar. Essas paredes me sufocam, Marianinha! Você precisa me entender! Não me olhes assim como quem não compreende. Nunca fui seu. Nunca fui de ninguém, nem de mim! Levanta, Mariana! Não me ates a teu chão, porque isto me reprime! As malas já estão prontas e só preciso saber de ti, que ficarás bem! Aprende comigo! Esses arroubos adolescentes fazem mal, querida! Nos deixam vulneráveis, expostos a um outro ser, tentados a unir nosso caminho ao dele... abrir mão de nossos quereres, sentir uma dor que não nos pertence! Mais que isso! Sentir apego de tal modo que não se consiga mais pensar sua própria vida sem que a mesma esteja misturada a do outro como uma química insolúvel, provocando uma dependência sem remédio. Amar é perigoso, querida! E isso não pode fazer bem! Ouve! Foge! Faz como eu... Faz! Emudece o coração e prometo que nunca mais irás chorar! A solidão não é tão mal, pois nos liberta daquela ânsia de temer a perda! É uma prisão viver refém de um medo tão cruel: ter e perder! A solidão é libertadora, Marianinha! Tu vens e vais quando quer, como quer. Com ela te tornas um corpo livre e não um sentimento! Com ela, serás como eu, querida! Sozinho. Marianinha?

 ... ... ...

Foi-se embora. Solidão é costume!
Carolina Moraes
06 de outubro de 2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Ele



Mesmo assim, as coisas estão caminhando razoavelmente bem. Sem clichês, até o pessoal lá em casa está aceitando melhor. No início é sempre aquela onda de intolerância, um silêncio ensurdecedor que se alia às expressões de desprezo, insatisfação. Depois é só o silêncio como a me dizer que contrariei as expectativas de todos! É foda carregar a sensação de ter decepcionado. No fundo, no fundo, eu me sentia na berlinda: ou decepcionava eles ou a mim... Escolhi a primeira opção mesmo não entendendo a razão de tanta frustração. A escolha era minha e dizia respeito a mim. Só a mim? Bebericava um vinho chileno maravilhoso enquanto observava ele se vestir. Era lindo, inteligente e valia cada barra que eu vinha enfrentando. E como valia! Estar com ele era diferente, não apenas novo, mas diferente e a diferença fascina, atrai, prende mesmo! Era 7 da noite e ele veio em minha direção. Hoje iria dormir em casa. Despediu-se de mim e foi embora. Assim que bateu a porta, me veio a velha sensação de insegurança... O pensamento teimava em imaginar coisas, o coração angustiado pela incerteza do “se”. Assustei com o telefone. Era minha mãe perguntando mais uma vez se iria para casa. De última hora decidi que sim. Sorri ao lembrar minha mãe, sem ela todas essas coisas seriam muito mais difíceis de se viver! Apesar de eu perceber claramente que ela não concordava de pronto com minha relação, a maneira como ela lidava com isso era muito mais leve, sem colocar seu amor por mim à prova, sabe? É como se ela, silenciosamente, me dissesse, “amar você independe de certas coisas!”. Maravilhosa a minha mãe. Já o meu pai envolve outras tantas questões... Não sei quem foi que delimitou as funções de pai e mãe, relegando ao pai o papel de intolerante! Me sinto diante dele como alguém sempre em busca de aprovação, com aquela cara de pedinte que implora “por favor, concorde comigo, aceite minhas escolhas”, mas ele finge não ouvir e se faz de cego até. O mais que faça, sempre o faz deixando claro que para ele, minha relação é um borrão no papel que fora apagado e deixara apenas vestígios para ele jogar em minha cara de vez em quando. E quanto mais percebo essa situação, entendo menos essa minha necessidade ridícula de aprovação que parece que exala quando estou diante dele. Até tento controlar, mas não consigo! Queria me libertar desse sentimento insano, pois sei ser impossível, e me sentir mais leve. Acho mesmo que a libertação de mais um “se” seria muito bom para mim. Assustei novamente com minha mãe ao telefone pedindo que chegasse há tempo para o café. Havia feito sopa de abóbora. Hum! Amava sopa de abóbora desde criança! Levantei pensando nele. Queria mesmo ligar, contar que iria para casa. Aquela vontade doida de falar a todo tempo, aquela saudade irracional de quem parece que passou anos sem ver a pessoa. E ele tão independente, tão senhor de si! Sua segurança me assustava, para mim era impossível amar e não temer. E ele não temia! No fundo, no fundo, achava mesmo que não me amava e só de pensar nisso, chegava a perder o fôlego! E por mais que me censurasse, esse pensamento me aparecia insistentemente, como uma certeza real! Assustei com o telefone gritando meu nome e espatifando-se no chão! Bati a porta do apê e agachei em desespero! Merda! Só me faltava ter quebrado o aparelho! E agora? Como iríamos nos falar? Precisava de um aparelho urgente! E se ele ligasse? Respirei fundo tentando parar com aquelas reações ridículas! Eu tremia como se tivesse 15 anos! Entrei no elevador e tentei sorrir! Pensamentos ruins atraem coisas ruins! Afinal, não havia nada que justificasse tanta angústia! Saí do prédio mais leve e decidi que iria a pé. Precisava de ar! Era isso! Uma boa caminhada seria ótimo. E de repente, já não sentia aquele aperto, aquela sensação de perda que sempre incomodava. Entrei em casa pela cozinha, como sempre fazia! O cheiro de sopa de abóbora inundava tudo! E como de praxe, abracei-a por trás! Seu perfume, discreto, era único, suficiente para se fazer sentir sem, no entanto, sufocar. Minha mãe era linda! E como queria ser como ela! Ela tomou meu rosto entre suas mãos e beijou-me como se fosse uma criança. E foi como se nada pudesse me alcançar naquela hora, porque ela estava comigo! Conversamos horas e horas enquanto a ajudava no preparo do jantar. Tudo estaria perfeito, não fosse a leve apreensão pela chegada de meu pai. Ela notava isso! Aliás, ela notava tudo! E no fundo, talvez também ansiasse pela aprovação dele, como eu! Mas sabia que seria complicado... A situação era complicada! Ele chegou calado, sabia que eu estava em casa e se fechava em copas. Aprendera a não mais me maltratar, mas continuava a me olhar como se não me visse! Nos cumprimentamos com polidez e comemos juntos como antigamente, imersos na tranquilidade familiar de costume, quebrada apenas por alguns momentos em que me excedia nos risos e gestos que ele recriminava prontamente. Tudo bem! Há muito tempo que eu, a fim de viver bem, deixara de me impor para ele. E salvo essas situações, a noite correra perfeita, ele fora dormir e nós ficamos a conversar, beber um bom vinho e a rir de coisas banais! Tinha tanta vontade de conversar com ela, falar de meus medos, da minha relação, de como ele era! Mas preferia me calar! Penso que ultrapassaria certos limites! Não sabia exatamente quais eram, mas sabia que havia limites! Acho até que fui eu quem os impus! Era melhor assim!  Tarde da noite, subi para o meu quarto e me deparei com as antigas coisas, os brinquedos nas prateleiras, as fotos na parede. Era bom estar ali e não era, ao mesmo tempo! O cheiro da infância e as lembranças de quando tudo era diferente se misturavam ao presente! Tomei o celular entre as mãos e tentei liga-lo novamente, sem sucesso! Sentei na cama, tentando controlar o turbilhão de sensações que frequentemente me assaltava desde que decidi sair de casa. Por que as coisas deveriam ter aquele peso? Qual a razão de não poderem ser diferentes? Algumas lágrimas caíram de meu rosto... Acho mesmo que não queria ver o óbvio: não pertencia mais àquele universo, àquela casa... Aquelas pessoas amavam outra pessoa e não eu, e como pensar isso era ruim! Um misto de culpa, medo e mais um outro tanto de sentimentos teimava em me atormentar. Definitivamente não conseguiria dormir! Desci as escadas lentamente, há essa hora a casa já dormia! Abri a garrafa do vinho que havíamos bebido até a metade e sentei no sofá da sala. Fiquei ali por horas até me deparar com a figura do meu pai. Ele me olhava soturno, silencioso, e sob a luz do abajur, sua face parecia a de outra pessoa! Sorri para ele, mas não houve resposta, ao contrário disso, houve um olhar que por mais que tente, nunca irei conseguir interpretar. Não era ódio, também não era amor... Não sei o que era! Mas era ruim, porque parecia com nada! Levantei sem fita-lo nos olhos e me dirigi à porta. Juro que pensei que ele iria impedir que eu fosse, mas não o fez! Congelado ao pé da escada, continuou a me encarar com aquela expressão incompreensível, talvez esperando realmente que eu fosse e não mais voltasse, e não mais atendesse às ligações e convites de minha mãe! Abaixei a cabeça – e na verdade nunca entendi porque fiz isso – e saí de lá olhando para o chão. Saí mudo, calado de pensamentos por dentro. Saí e nunca mais voltei!

Carolina Moraes
09 de agosto de 2013

sexta-feira, 28 de junho de 2013


Um fim mal acabado

Seu nome era Constança. Suave como a pluma, falava a respeito da crise mundial, apontando soluções sempre impossíveis e convocando soldados para sua marcha surda. Os estudantes passavam por ela e olhavam como se fosse doida. Depois de horas a fio tecendo teorias a respeito da desigualdade social, seca no nordeste, desemprego e coisas assim, descia do púlpito e seguia muda e só. Marchava sempre só. Estudávamos na mesma universidade. Ela fazia Filosofia, falava francês e gostava de discutir maneiras de resolver problemas insolúveis. Eu fazia Engenharia Civil e estava mais interessado na urbanização desenfreada que ela tanto criticava. Estagiava na construção de alguns condomínios de casas e apartamentos para funcionários públicos e precisava desse impulso para estabilizar de certo modo minha posição. A formatura estava próxima e muito ainda estava por fazer. Éramos completamente opostos e talvez por isso, apesar de meu interesse nunca tenha ousado me aproximar. Ainda assim, com tantas diferenças, aconteceu de a gente se encontrar. Como disse, ela marchava só, chovia, e nessas horas sempre chove. Eu parei meu carro financiado para dar-lhe carona. Os famigerados carros que ela tanto culpava pelos problemas ambientais de bla bla bla. Hoje, apesar de estar na moda, ninguém se preocupa muito com isso. O susto foi tamanho que a fez emudecer. Ela tão repleta de teorias e retóricas emudeceu diante mim acenando para que entrasse. Hesitou, mas entrou indecisa. Olá! Disse querendo ser natural, e aparentando naturalidade nenhuma. Ela me deu um sorriso de lado, um pouco vazio. Conheço você dos discursos inflamados na Universidade. Ela não se voltou para mim um segundo sequer e reparei que estava constrangida. Já reparei em você apreciando “os discursos inflamados” sempre de longe. Vive sempre sem tomar partido de causa nenhuma? Nem sempre. Eu disse rindo por sorrir. Tomo partido de causas menores. Nunca pretendi mudar o mundo. Ela se virou para mim indignada. Foi a primeira vez que pude fitar seu rosto tão perto. Quase bato meu carro financiado embevecido por aqueles olhos azuis lindos. Lindíssimos. Ouso dizer que se o pai de Capitu tivesse visto esses olhos, Dom Casmurro teria se perdido por uma Constança e seus olhos de mar. Um mar sem ressaca, vale ressaltar! Nos perdemos no tempo, meio atarantados por causa da situação. Era um não sei o quê que vinha de não sei onde. Engraçado lembrar. E foi engraçado viver, porque rimos e toda a tensão causada por divergências ideológicas se esvaiu diante dos olhos. Meus e dela. Decerto que meus olhos não eram lá essas coisas. Um castanho despretensioso perde lugar para qualquer par de olhos azuis ou verdes à moda europeia. Nem falo dos cabelos. Apesar de lisos, não eram loiros como os dela. Ah! Paradoxo! Constança nórdica e eu latino. Sorri mais e ela indagou curiosa. Expliquei a contradição e sorri mais ainda. Sorrimos os dois e foi bom! Ela apontou o lugar com o dedo e parei por impulso. Constança desceu do carro militante e rebelde. Agradeceu com um aceno sutil e sumiu na multidão. E pensei que teria sido maravilhoso se tivesse sido minha. Mas as ideologias eram um mal irremediável. Ela queria mudar o mundo e eu... bem, eu não queria. Hoje, anos depois, ela vive em um condomínio construído por mim, trabalha como professora e é mãe de três filhos. Seu marido é dono de uma frota de táxi e pelo que vi, não deu para saber se também sonhava em mudar o mundo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Quem é ele?
 
Queria lutar contra a corrupção, mas esqueceu de não furar a fila e obedecer o sinal. No primeiro instante, não hesitou em negar a verdade e contar a sua versão da história. Pior que isso, não enxergou que poderia haver outra versão, outra verdade... Desde pequeno, aprendera a tirar vantagem a fim de se proteger, mesmo sem saber exatamente o que estava fazendo; hoje o faz conscienciosamente.
Aos poucos, compreendeu que ser politicamente correto é melhor, e assim aprendeu a ser correto só por malandragem. Várias vezes usa a hipocrisia a seu favor, censura as opiniões contrárias a sua, e hoje sonega o imposto e faz que não vê. Ouso dizer que sobe no palanque, vai às redes sociais e arrota certezas e promessas... Quando olho para “ele”, vejo cada um de nós que pensa a corrupção como algo engenhoso, trabalhoso talvez!
Ser corrupto é mais fácil que se pensa e tudo começa antes mesmo de nos darmos conta disso! Ser corrupto é mesmo tentador, e infeliz daqueles que desprezam essa informação! TODOS estamos suscetíveis a desvios de caráter e devíamos ser mais humildes na expressão de nossas ideologias, sobretudo ao julgar os outros!
Quer lutar contra a corrupção? Comece dentro de você, dentro de sua casa, em sua escola, enfim! Você verá quão trabalhoso é mudar a si mesmo! Mais que isso, verá que ninguém precisa de holofotes para ser honesto. A honestidade é linda mesmo quando assumimos o próprio erro! E o que seria da nossa honestidade, se não fosse a nossa mentira!
DESCONFIO dos que gritam certezas... Dos que são perfeitos demais! Do lugar que ocupo em minha sociedade, e tenho plena convicção que – com dinheiro ou sem – é APENAS UM LUGAR, tento fazer a minha parte e não ceder sempre à tentação que as facilidades da corrupção oferecem. E eu tento todo dia, todo dia...
Carolina Moraes

quarta-feira, 15 de maio de 2013


“Especiais”

             Saiu apressada... Queria pegar o ônibus das seis e já estava atrasada. Ela mesma era um atraso com aquela sua perna de metal que teimava em não flexionar o joelho. Trabalhava em uma loja de embalagens e dividia o turno com uma colega que mal olhava para ela. Não era feia, mas a pouca beleza que tinha não sobrepunha a frieza de sua perna mecânica. Chamava-se Aurélia! Os cabelos loiros escorriam pelos olhos aproveitando que as mãos ocupadas não podiam os prender atrás das orelhas. Tinha um corpo bem desenhado e se não fosse a maldita deficiência, teria... teria! Gaguejava toda só em pensar!

            Chegou ao ponto de ônibus com uma dificuldade diferente da costumeira. É que agora o maldito joelho estava emperrando e isso complicava sua locomoção! Teria que esperar até o fim do mês para então fazer o conserto. Ofegante, depositou a bolsa e os livros no lugar cedido por um moço lindo que mal a olhara nos olhos! Agradeceu constrangida e sentou-se silenciosa, observando as mesmas pessoas de todos os dias... E sempre eram as mesmas, com o mesmo semblante de pena, a mirar sua perna defeituosa. Segurou os livros com força e apertou-os contra o peito! Tinha raiva de si mesma por ainda se incomodar com os olhares e suas intenções de compaixão mascaradas pela solidariedade! Havia oito anos desde que se acidentou e ainda aquele aperto, a angústia teimosa e os olhos, insistentes em lacrimejar!

            Seu ônibus chegou apinhado de gente apressada, impaciente com a sua demora em vencer os degraus irritantes! Tantos! Três degraus intermináveis! Oh! Deus! Como odiava aqueles degraus. Antigamente subia sem nem dar por eles, tão displicente, corriqueira, feliz como uma adolescente no auge de seus 17 anos! Mas hoje, especialmente hoje, estava tudo tão mais difícil! O joelho teimava em não dobrar, obstinado em sua posição! Uma senhora se ofereceu para segurar sua bolsa e os livros que ela deu sem se dar ao luxo de recusar! Depois do calvário, sentou-se no local reservado a pessoas como ela. Sentou com os olhos baixos, muda e constrangida! Sempre esse maldito constrangimento, aquela vergonha de pesar mais que os outros, aquele medo de ver nos olhos das pessoas a sua limitação estampada como algo que incomoda e atrapalha a rotina dos que são ditos normais.

            Precisava ser otimista. Afinal, as coisas estavam melhorando! Estava trabalhando em um supermercado, embalava presentes e isso era ótimo! Usava as valiosas mãos que antes nem valorizava tanto! Deixara de ser uma inútil a se arrastar pela casa, ouvindo as queixas da tia! Está certo que na primeira oportunidade, suas colegas de trabalho davam um jeitinho de deixar escapar que depois dessas tais cotas para portadores de necessidades especiais, muita gente boa pro serviço tinha ficado desempregada! “A Jane saiu pra você entrar! A coitada agora está se vendo doida com a filha de cinco anos pra criar sozinha! Desde que foi mandada embora não arrumou trabalho nenhum! Mil vezes perder a mão que ficar sem emprego!” Certa vez, pensou até em se desculpar por toda aquela situação, mas não houve tempo, pois logo as poucas colegas que restaram foram substituídas por um outro tanto de mulheres normais e um outro tanto bem maior de deficientes! Era a lei! Deficiente agora não era mais deficiente! O nome agora era portador de necessidades especiais, e apesar de ainda não se achar uma coisa nem outra, preferia mil vezes ser chamada assim. Era mais digno de respeito. Ficou toda emocionada quando leu a reportagem dessa lei no jornal da vizinha e foi através da mesma que viu as ofertas de emprego e começou a trabalhar no mercado.

Iria completar dois meses no novo emprego e ainda não fizera muitos amigos. Não por falta de vontade, na verdade a questão era bem outra! Aurélia dividia o turno com uma moça normal que mal falava com ela! Seu nome era Marisa e vivia lixando as unhas com aquele batom vermelho encarnado que chamava mais atenção que os cabelos oxigenados. Trabalhavam juntas das oito da manhã à uma da tarde e, durante todo esse tempo, trocavam umas poucas palavras que não dariam para encher uma folha de caderno. Na verdade não tinham muito assunto e por mais que Aurélia se esforçasse, nunca conseguia mais que afirmativas e negativas secas!

Chegou pontualmente como sempre, apesar do maldito joelho, abriu o setor de embalagens e esperou Marisa, sempre atrasada. Mas nesse dia ela não veio. Seus olhos procuravam ansiosos pela chegada da colega que não vinha. O mercado ainda não tinha sido aberto e logo os clientes começariam a chegar. Junto com eles viriam as gorjetas, os sorrisos e promessas de algo mais, tudo para Marisa e seu batom chamativo cheio de malícia. Não sabia rir como ela, não tinha a mesma cara.

Foi quando ele veio silencioso e ficou a observá-la. De início, como sempre, sentiu-se constrangida e esperou sem muito pestanejar que o homem desviasse os olhos de seus olhos como era comum ver os rapazes fazerem, mas, estava atrás do balcão e protegida pela placa de madeira, por um momento pôde esquecer de sua condição e aos poucos foi se deixando envolver pelo sorriso tão jovial. Há tempos que não se sentia viva como mulher, pois sua deficiência, além de tudo, afastava qualquer possibilidade de relacionamento. Por isso, viu-se tentada a corresponder ao sorriso, estava mesmo decidida a fazê-lo e como não tivesse coragem, baixou os olhos mais uma vez. Acho que pensou que seu medo jamais lhe daria uma chance de saber se de fato teria sido bom!

E foi nesse entrementes que a coisa toda inteira se modificou. Ele caminhava para ela e o fazia com plenitude de gestos e olhares. Seu corpo estremeceu inteiro. Estava em pânico, paralisada diante do imprevisto, das possibilidades...

Aí ele chegou, sorriu e não se fez entender. Não falou. Gesticulou e nesse jogo Aurélia chegou a pensar que ele a tomava como surda, chegou mesmo a dizer ofendida que não o era, quando percebeu... Pensou que ele estivesse a zombar dela, mas não! Sentiu-se uma completa idiota ao notar que ele era surdo-mudo. Ele era o surdo, o deficiente, o portador de necessidades especiais! Aquilo era absurdo. Jamais a situação tinha sido vista por ela daquela maneira! Era como se ela não fosse também uma deficiente, como se a deficiência dele fosse pior que a sua... Estava desnorteada ao perceber que sentia todas aquelas coisas e procurava rearrumar tudo que já havia arrumado horas antes. Agora sim sabia! Ele só se aproximara porque sabia de sua perna aleijada. Ele sentiu-se igual a ela e isso era muito desaforo! Ser comparada a um surdo, ser cortejada por um surdo! Queria sumir dali. Seus olhos fugiam dos olhos surdos do homem que tentava se comunicar e não encontrava resposta! As mãos de Aurélia tremiam, seus braços penderam sobre o corpo e as caixas e embalagens desabaram como tudo a sua volta. Ele era surdo!

Em uma corrida desembestada, ela pegou a sua bolsa, seus livros e fugiu mancando do mercado repleto de pessoas. Correu para longe do homem, para longe de si mesma e das outras deficiências que enxergara em si naquela hora. O homem mudo não ouviu seu grito rouco, em contrapartida pôde ler em seu rosto a expressão do pavor que a fez fugir. Até agora ele deve estar parado diante do balcão, procurando a razão que desfez o sorriso da moça, se perguntando o que havia feito de errado.

Desde aquele dia, Aurélia nunca mais voltou. Decidiu que pessoas “especiais” eram “especiais” demais, sensíveis demais, preconceituosas demais... Preferiu se enfurnar novamente dentro de casa, a se arrastar pelas horas de dias intermináveis e esquecer!

quinta-feira, 2 de maio de 2013





Era a maçã

Era quase uma dor física. Os pensamentos espasmódicos flutuavam em torno da figura dela, ela tão distante, ela tão presente. Mesmo diante de tantas, em tantas, era nela que o pensamento teimava em pensar. E por mais que ele negasse, resistisse, ela vinha como verdade absoluta, feito um turbilhão a disparar o coração, vidrar os olhos como uma bebida alucinógena, como um cigarro que vicia. Se ao menos ela fosse um vício, com todas as cargas negativas que só um vício pode ter... Se ao menos ela fosse ruim. Seria tão mais fácil fechar a porta, deixar morrer.

Tentava a todo custo encontrar mazelas a fim de justificar o esquecimento. Era necessário esquecer. Mas ele sabia de quem ele estava falando e por isso mesmo lembrava o jeito manso de enrolar os cabelos longos, a mania leve de enlaçar as pernas entre as outras, como a dar um nó. Nó que o ataria para sempre! Os olhos cor de mel, os dedos esguios, as unhas sem pintura... ela inteira não tinha pintura e talvez fosse isso que fascinasse, enfeitiçasse. Ela tão ideal, tão promissora, tão diferente...

A dor era mesmo física, faltava-lhe o ar, os sentidos estavam conturbados, urgiam calmaria! Ele inteiro sentia dor por tanto querer! O que tinha de sentir outros cheiros? Justificava seus instintos de homem, era a regra geral, afinal! Mas ele tão inflexível, ela tão passional, ele tão proibido, ela tão espontânea...  

Não podia! Não era certo. As vocações eram outras, assim como os caminhos... mas houve uma concessiva a desmoronar tudo. Ou teria sido uma adversativa com vias de conclusão? O que se sabe é do que se sentiu antes da dor. Ela, a inocente. Ele, o predador. O santo, o quase padre. O pecador, o quase homem. Apesar da ausência de ações e palavras, o pensamento era um sertão imenso de desejo queimando como algo seco e constante. Eva, tão retirante, tão retirada! Eva, tocando piano e toda um silêncio só! Chegara muda e firme, arauto de inquietações. Eva fértil, convidando ao pecado.

Sem dizer palavra, fazia-o tremer, sem ao menos tocar fazia-o sentir coisas já esquecidas. Um único toque e tudo seria nada! Foi quando, diante do piano, a tecla emperrou e a música que inundava a sacristia estancou como um ferimento nobre, feito à bala. Foi preciso puxar, se achegar, estancar...

O que se deu depois foi de um lirismo erótico sem igual! Ele ao lado dela, a tecla teimosa, as unhas sem pintura, a concessiva que imperou diante do braço roçando no outro braço, a boca salivando diante do reprimido... E ela, Eva inocente, de nada se apercebia e deixava que os cabelos envolvessem o pescoço dele. Ele Adão, quase padre no conhecer, dono de um desejo imantado mesmo sem nunca ter conhecido uma mulher. E os cabelos atando-o ao desejo, e os olhos chamando-o sem piscar...

Era quase uma dor física. Quase uma dor física que o fez desfalecer ao lado dela... que sentada ao banco, olhava desentendida. Ele arfante, ela, Eva desconhecida. Face a face, a um toque das mãos... houve o toque das mãos. E ele e ela... Eva tão inocente, ele tão Adão... Ergueram-se concomitantemente e ao passo em que ele recuava, ela incidia sobre o desejo violento. Eva descobridora! Eva pele na boca, beijo no seio...

Era quase uma dor física. Sexo no sexo, a concessiva diante de santos, anjos e castiçais. Eva real, unânime como um vício, gozo como descoberta. Eva, maçã! Ele, Adão inteligível. Ela, leve; ele suicida!
 
Carolina
2009

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Meu pé de laranja-lima

Não lembro do dia em que deixei de acreditar em fadas... Nem faço ideia do momento em que as fantasias deram lugar à outra coisa que não sei ao certo dizer o nome. O que sei é que houve um momento em que não conversava mais com os brinquedos e olhava para as pessoas, sabendo que elas também poderiam me fazer mal. A sensação de olhar para um pé de laranja-lima e perceber que ele não responde mais às nossas perguntas; que, na verdade, ele nunca respondeu; entender que as pessoas poderão nos decepcionar; que nossos pais não poderão impedir nosso sofrimento por mais que queiram... Acho que isso é crescer, sair do casulo e aprender a lidar com a realidade. Mas como crescer sem perder a ternura? Difícil isso!

Em seu livro “Meu pé de laranja-lima”, José Mauro de Vasconcelos fala dessa transição entre acreditar e deixar de acreditar em fantasia; entre ser pequeno e grande ao mesmo tempo; entre a incrível capacidade de sentir dor e reinventar-se depois dela. E tudo isso, através de uma narrativa envolvente que personifica o mágico universo psicológico de um menino fantástico como tantos que conheci e agora não lembro o nome. Longe de ser um livro para crianças, é um livro sobre crianças. Mais que isso! Sobre a criança que nós fomos e deixamos de ser. Por essa razão nos traz nostalgia, porque no fundo, no fundo, todos fomos um pouco parecidos com Zezé, cheios de sonhos e imaginação, buscando ser artistas de cinema com vontade de mudar o mundo;  aprendendo a lidar com as frustrações, engolidos pela realidade que nos faz perceber as falhas, o fato, a razão de tudo... e esquecer de quando ainda sonhávamos.
No filme homônimo, recém-lançado neste ano, o diretor Marcos Bernstein teve a árdua missão de encontrar um menino espirituoso a fim de dar vida a todo o mundo encantado que povoou o imaginário de inúmeros leitores que, como eu, se apaixonaram pelas aventuras do menino que tinha o diabo no corpo e apanhava por suas tantas travessuras; que tinha um amigo Portuga e um pássaro que assoviava dentro dele. João Guilherme Ávila é esse menino. E como ele o representou bem! Tanto que coube certinho na ideia que fazia dele quando ainda tinha 11 anos. José de Abreu, como era de esperar, dá um show ao personificar meu Portuga, apesar de não ser tão gordo como quando eu imaginava.

É redundante dizer que a obra cinematográfica não consegue captar toda a magia do livro, simplesmente porque quem fazia a magia de tudo éramos nós, leitores, que dávamos vida às páginas do José Mauro. Apesar disso, o diretor é feliz, porque consegue transmitir os dramas interiores do menino que precocemente deixa de ser criança. Através do corte do pé de laranja-lima e da morte de seu amigo Portuga, o garoto vai deixando de acreditar que a Europa fica no quintal de sua casa, para, finalmente, dizer de si para si, que sua árvore confidente nunca se comunicou com ele. Era sonho e, por essa razão, nunca foi real.
Nos custa crer que certos sonhos não eram reais... Dói perceber que nosso chão não era tão firme assim e que nossos referenciais poderiam não estar tão certos. Então, como crescer sem perder a ternura? Difícil mesmo isso! Poderia dizer que a obra de José Mauro de Vasconcelos fala desta perda da ternura, mas entendo que é justamente o contrário! O autor nos convida a sonhar novamente junto com o Zezé que ele foi, que nós fomos, que serão nossos filhos. E nos pede que olhemos para ele, para nós e nossos filhos com olhos de ternura, de quem os entende, porque um dia já fomos assim.

Em outros livros do autor, igual beleza e ternura são encontradas, como em “Vamos aquecer o sol” e “Doidão”. Recomendo os livros, o filme... Recomendo TERNURA!
 


Do outro lado da rua 
 
          Trabalhava em uma drogaria de seu bairro. Era pueril como toda gente, mas seu caminhar era de uma leveza quase ingênua e sensual. Todo fim de tarde ela passava por mim, nobre como uma qualquer. Eu a observava quase como um passatempo e ela, achando-se incógnita, caminhava seu passo curto como a alcançar as nuvens em um castelo distante no Olimpo. Sentia-me tentado a segui-la, diminuir a distância, mas o medo... Esse famigerado! E se de perto ela não fosse tão ideal como a ninfa de meu fim de tarde? Acreditei na máxima – seria uma máxima? – de que todas as fantasias duram o instante que passa, de modo que permaneci impassível, do outro lado da rua. Não sei se disse, mas era casado e planejava ter o primeiro filho... acho que ainda, naquela época, amava minha esposa
          Mas o que se passou...
          Voltemos ao fim de tarde. Apreciar tal caminhar aos poucos se tornou vício e quando ela demorava a passar sentia a angústia ansiosa e apaixonada dos enamorados. Até que um dia ela, de fato, não passou. Como era de costume, esperei. E se mais esperasse, morreria. Decidi ir à drogaria, almejando que lá ela estivesse, porém pensava mil atrocidades a fim de justificar sua demora... Mal dos apaixonados que imaginam tragédias, as mais loucas possíveis, diante dos imprevistos. Só então me lembrei de que nada sabia sobre ela, só do seu caminhar. Não tive meios de perguntar por um nome desconhecido. Senti-me um Quixote diante do inusitado. Fiquei andando de um lado para o outro tentando articular ideias para sair daquela situação de espera silenciosa.
         Nada houve. Penso que durante todo tempo nem pensei. Pelo menos nada proveitoso. Se fosse escritor de ficção, imaginaria uma solução! Esses caras têm a mente fervilhante de ideias! Lembrei das aulas de redação de dona Maria Laura... esqueci... era péssimo em redação! Fui para casa preocupadíssimo com minha ninfa de caminhar tão meu e, ao mesmo tempo, arrependido por não ter escrito mais ficções. Cheguei à conclusão cabal de que imaginação é tudo. Não dormi. Mal falei. Fumei, e um cigarro atrás do outro. Minha esposa, já falei dela? Sim, eu era casado e trabalhava em uma loja de laticínios e, apesar de ganhar pouco, tinha o cargo de subgerente, o que de certo modo me proporcionava uma leve sensação de notoriedade. Bem de leve! Minha esposa amava dizer às amigas “Raul é subgerente”, melhor que dizer vendedor... O rótulo nas relações sociais é importante. Minha esposa estranhou meu mutismo, perguntou sem cessar até que inventei uma desculpa. Estava mestre nisso. Fiquei assim depois do caminhar... Chegava em casa e ficava reconstituindo o caminhar dolente de minha amada incógnita e inventava desculpas, as mais diversas, para justificar a distância. Com o tempo as desculpas foram ficando escassas e tornaram-se absurdas. Por vezes pensava “essa ela não vai acreditar”, mas ela sempre acreditava. Comecei então a pensar que as mulheres acreditam no que lhes convém, pois já brigamos por muito menos.
Mesmo que quisesse dizer a verdade, diria o quê? “Querida, acho que me apaixonei por alguém que não sei o nome e nem sequer troquei um bom dia de longe...” Não! Muito absurdo! Nunca ouvi dizer uma coisa dessas! Preferia, então, as desculpas absurdas! Era menos ridículo!!
Dia seguinte fui ao trabalho mais cedo e decidi comprar Band-aid! Descobri que precisava de Band-aid e de gaze também. Nem me dei conta quando já estava sendo atendido por uma moça que olhava pra mim com cara de curiosa e desentendida, imagino que gostaria de saber o que eu procurava tanto dentro da farmácia. Disparei que estava necessitadíssimo de ir ao banheiro. Ela riu e eu me senti mais idiota que o mais idiota que já conheci! Educada, a moça me conduziu ao interior da farmácia, dizendo que o uso do banheiro só era permitido a funcionários, mas que abriria uma exceção diante de meu desespero. Entrei no banheiro tremendo inteiro. Eu, um homem de quarenta e cinco anos, suando frio como um adolescente... Tentei me situar. Estava no banheiro da drogaria em que ela trabalhava, e? E só!! Trancado no banheiro tentava articular ideias para alcançar as respostas sem parecer muito tresloucado!! Levei alguns minutos trancado, meio envergonhado, decerto, mas estava mais preocupado em matar minha curiosidade – esse bicho infeliz capaz de atormentar até o mais correto dos homens!!!
Tentando desenroscar o fio do novelo em que me meti saí do banheiro casmurro e fui direto ao caixa. A atendente me olhava como se fosse um insano. No fim das contas acho mesmo que estava insano! Paguei o Band-aid e a gaze e saí sem querer sair. Passei o resto do dia mal humorado. Droga de vida também! Cheguei abusado e dormi, dormi? Foi aí que decidi ir direto ao ponto!! Isso mesmo! Amanhã iria até lá e se ela não estivesse, perguntaria diretamente por ela. Diria que sou da família e tinha notícias de uns parentes nossos. Que mal há nisso? Mal consegui dormir de tanta ansiedade. Perguntava-me porque não tinha tomado essa decisão antes!!
E assim fiz!! Antes de a drogaria abrir, lá estava eu de prontidão. Firme em meus propósitos. A atendente me viu assim que cruzou a esquina. A essa altura já estava me achando um louco varrido. Tudo bem! Não importo mesmo! Tenho ouvido isso de meus colegas a semana inteira. Um a mais, um a menos... não faz diferença!!! Perguntei por ela... Sem nem citar o nome, indaguei pela outra funcionária. Pedi informações, falei do desespero. Era primo dela, nossa avó estava muito doente, queria vê-la antes de partir! Se bem lembro, ainda cheguei a derramar uma ou duas lágrimas. Um artista!! A atendente, sempre me olhando com a convicção de que eu era de fato louco, disse que não estava autorizada a dar informações a respeito dos funcionários. Olhei com um ar de dó... Penso que comovi, pois logo depois ela decidiu “vou abrir uma exceção, mas não vá dizer que fui eu quem deu a informação! Não posso perder esse emprego!” Falou em tom de voz ameaçador! E foi reclamando da dificuldade de se conseguir emprego hoje em dia e mais um monte de coisas que não ouvi palavra, ansioso a espera do tal papel com o endereço dela! No fim, falou dela, que estava adoentada. Seu nome era Dora! Lindo!! Dora!! Falou como era reservada “Dora é moça muito calada. Quase não fala, não tem amigos!” Ah! Minha Dora de caminhar tão meu!! Agora, além de um caminhar, tinha um nome!! Ela não era mais uma incógnita!! Saí da farmácia tão atarantado que nem fui trabalhar, mas sim direto ao endereço dela! Longe pra burro, diga-se de passagem! Mas tinha que ser!! As melhores coisas são as mais difíceis!! Dora, Dorinha!!
Foram três as conduções que peguei em direção a sua casa! E quando lá cheguei, vim embora! Voltei esbaforido como um adolescente diante da primeira namorada!! Depois de velho estava ficando besta! Senti-me um parvo por ser tão medroso, e conclui que era a euforia do primeiro momento. E assim se passaram os outros dias – três ao todo – em que ficava horas a fio plantado em frente ao seu prédio e ela nada de aparecer! Ah! Dora, Dorinha!! Saía do trabalho mais cedo e ia pra frente de sua casa, esperar... a coragem chegar, o medo ir embora, o destino me dar uma mãozinha que afinal a situação não era fácil. Iria subir, bater em sua porta e dizer o quê? “Olá, me chamo Raul e estou vidrado em seu caminhar. Sei que não me conhece, mas...” Nossa!! Cada ensaio era pior que o outro!! E assim fiquei dias e dias! E me intrigava o fato de não a ver! Ela não saía!
Foi quando tudo se desenrolou feito novelo de lã! Era uma tarde despretensiosa. A essa altura minha mulher já era ex! E nem dei por mim quando cheguei em casa e achei tudo mudo! Os poucos armários que ficaram estavam quase que vazios. A infeliz se foi levando tudo e nem sequer deixou um adeus. Pensei na música do Chico e cheguei à conclusão de que trocando em miúdos, foi melhor assim mesmo!!! Cessaram as desculpas! Estava livre para minha musa enclausurada que na tarde despretensiosa deu o ar da graça!! Ar nada! A coitada nem respirava! Saiu de casa na ambulância direto pra o Hospital! Fiquei meio pasmo, a cara apatetada, vendo a ambulância seguir desembestada dando aquele seu grito de desespero pedindo passagem!
Fiz muitas perguntas a duas vizinhas que me falaram tudo sem muito pestanejar! “Dora mora sozinha, a pobrezinha! Trabalha feito uma condenada! Não é muito de sair! Namorado? Não! Sempre foi muito reservada!! O Hospital é o Ernesto Campos de Paiva!” Rumei insano para o Hospital! Feliz por informações valiosas e temeroso pela saúde de minha amada Doralinda, Doraminha! Identifiquei-me como primo, o mesmo da mentira que contei na drogaria! O médico, um magro de hálito horrível com cara de plantão mal acabado, deixou-me a par de tudo! E o tudo ainda era muito vago, porque de tudo só se sabia que Dora estava com uma doença, que pra variar não se sabia qual era! Quase morri do coração quando o doutor me falou que não sabia dos riscos!! Pedi pra visitar. E foi suando frio que entrei na enfermaria. Ela estava meio sonolenta e riu um riso que achei o mais lindo de toda a humanidade! Reparei que meus dedos não obedeciam muito às minhas ordens e optei por deixá-los em meus bolsos! Só me faltava agora ficar rouco, o que por Jesus não aconteceu! Daí falei umas bobajadas que prefiro nem comentar, o que sei é que quando resolvi falar o porque de eu estar ali, a coitada deu um ganido meio murcho, dois tremeliques e morreu! Fiquei pasmo escutando o diabo do barulhinho da máquina que fazia um tuuuuuuuu insistente que entrava pelo meu juízo me deixando em estado de choque. Acho que fiquei ouvindo durante os três dias em que fiquei internado no hospital sem ainda dar por mim, quanto mais pelo resto.

           

domingo, 28 de abril de 2013




Quanto tempo dura sua dor? De repente você sofre e... olha para si mesma e percebe a urgência de recomeçar! Redescobrir as pequenas alegrias que insistem em fugir de você. As horas que se eternizam nos ponteiros de seu relógio, os sorrisos alheios que passam lembrando a toda hora que não são seus, que aqueles sentimentos não foram para você. Aí se esconde, porque não quer ser o alvo. E no meio da concha, “vocêcaramujo”, se revolve lambendo as feridas que ainda não cicatrizaram, mais que isso, revolveram chagas antigas, marcas de um passado já esquecido.

Mas... quanto tempo dura sua dor? Quanto tempo demora para você se olhar? Assumir os deslizes, a pena que sentiu de si mesma e decidir que em seu rosto, essa é a hora dos sorrisos? Aqueles que antes não eram para você?

Quando seu coração acalma, tudo vai se acomodando em algum lugar, mesmo que este lugar não seja ideal. Assim, os pedaços de mundo que compõem a sua vida vão serenando para que você se revigore e volte a caminhar. Mas junto com os primeiros passos, vem o medo de sentir toda a frustração de novo. Aí você hesita, recua, desvia...

Há as pessoas que nunca pulam a etapa da dor, e vivem a se torturar pelo que foi, impedidas de viver o que poderia ser. E Tomadas pelo temor de sofrer, elas sofrem como se isso fosse uma condição constante em suas vidas. É como se elas morressem em vida, engessadas pela ilusão de não sofrer mais.

Mas há aquelas que esquecem e retomam o ímpeto e recomeçam renovadas até que, num fim de tarde de um dia qualquer, elas vacilam e caem novamente. Essas pessoas se acostumaram a cair, aprenderam caindo, perderam muitas vezes o viço para ganharem cicatrizes muitas vezes profundas... Mas elas viveram, sentiram o gosto de enfrentar o medo e viver a intensidade das incertezas.

Porque, na verdade, o tempo da dor só dura até você descobrir que o medo, a qualquer momento, pode chegar e que não há receita para se usar estando diante dele... E no final das contas, o que há mesmo é sua vontade de viver e enfrentar o mundo.

FSA, 27 de fevereiro de 2013

sábado, 27 de abril de 2013


"Sempre sofri do mal irreparável da Literatura... Por conta dele, cada coisa em minha vida ganha significado diferente. E nessa perspectiva, as pernas não são apenas pernas, mas sim sustento, movimento, teia!
Esse vício me impele a descrever o indescritível, através de um olhar que recorta os extremos e captura a intensidade dos momentos mais íntimos por meio de palavras. Da dor ao marasmo, passo pela vida pulando de letra em letra, com a tonicidade das palavras que possuem significado próprio. Nada em mim é átono, nunca foi!"
(Carolina Moraes, dezembro de 2012)
A ciência do erro

Errar, desrespeitar prazos, cometer equívocos, enfim, frustrar alguém não é lá essas coisas. Quando nos deparamos com situações desta natureza, o desconforto em torno disso é inevitável. Nessas horas, reavaliamos se nossas metas foram bem traçadas em relação ao tempo determinado, se houve prevenção a respeito de possíveis imprevistos, se as nossas demandas eram realmente possíveis de serem realizadas, se a desatenção foi decorrente de uma sobrecarga ou abalo emocional, se o equívoco surgiu de uma falha de interpretação,
ou então, se, de algum modo, contribuímos para as expectativas excessivas de uma terceira pessoa em relação ao bom andamento de nossas ações.
Hoje, mais que nunca, somos programados para não errar, pois celulares, tablets e outros tantos recursos estão aí para nos lembrar do tanto que há para ser feito. Assim, reuniões, planejamentos e pendências não se perdem mais em meio à louca rotina do dia-a-dia. O problema é que, ainda assim, erramos. E a sensação que advém desse erro é péssima! É como se estivéssemos entre os 20% que conseguiram empreender o “quase” impossível!
Acontece que o erro não é uma ciência exata, simplesmente porque é cometido por seres humanos sujeitos a incertezas, imprevistos, oscilações sem razões predeterminadas ou explicáveis. É essa humanidade, inclusive, que faz com que duas horas de conversa com alguém agradável pareçam uma, em um processo que envolve mais emoção que qualquer outra coisa. Em suma, o tempo é um só, a maneira como você se situa – ou não – nele é que faz toda a diferença. Sendo assim, melhor que se angustiar pela falha é perguntar o que te levou a cometê-la. Mais que isso! Como você reage diante dela, sobretudo, diante das pessoas que de certo modo, foram atingidas por ela. Avaliar essas ocasiões é importante para que a culpa seja leve, isto porque em grande parte dos casos, cedo ou tarde, ela vem, assim como as situações de erro.
Quando as horas escaparem de seu relógio, quando seu dia carecer de mais que 24 horas, feche os olhos, respire fundo e tente se situar em meio ao turbilhão. As coisas vão cair de sua estante, você vai perder momentos importantes, descumprir prazos, decepcionar pessoas. Às vezes as perdas, as ausências, as invejas, as saudades, enfim, as circunstâncias vão fazer isso, desarrumar tudo, deixar a gente à deriva e nos levar a errar. Nessas horas, deixe tudo acontecer, depois se levante e tente arrumar tudo de novo. E de novo, de novo...
Carolina Moraes
 

Marrakech!

Ouço Tom Jobim em meio a crepúsculos drummondianos. As águas de março não vieram por culpa do “El niño”, contrariando as previsões do poeta. E fechando o verão, o que temos é o início de um outro verão perene, pereneando as estações todas, engolindo do outono ao inverno, transformando tudo em quentura, simplesmente. Sem um ar condicionado, ai de mim! Ai de meu cigarro e minhas sestas revigorantes, sempre ao som do Tom, de uma bossa ou coisa assim que me deixe cool, cheia de ideologia, cultura e identidade! Hoje ser engajado, inteligente e consciente é fashion! Por essa razão, o discurso pronto é primordial!  Gosto de me refestelar em minha poltrona “pré-moldada” a meu corpo lipoaspirado e curtir minhas crises baudelairianas como peça sem encaixe de um mundo pós-moderno. Eu, toda out, neocolonizada, atropelada pelas liquidações que passam em alta velocidade, fora do tempo, da grei... Difícil isso! Pensava que viver em pleno século XXI seria mais fácil! Qual o quê! Doidera pura! Às vezes me sinto anestesiada diante de tantos rótulos e tendências! A tendência agora é... E Maria Creuza acusa desesperada, “você abusou... mas não faz mal se eu insisto nesse tema.” Ninguém ouve mais Maria Creuza! Ninguém passa a tarde em Itapoã! Câncer de pele, falta de tempo. Quem é que vadia hoje em dia? E eu já estou bebendo demais, depressiva demais, cansada de nem ser! Meu namorado, o carinha que estou ficando... Tenho quase quarenta anos e me sinto obrigada a falar “o carinha que estou ficando!”. Ouve que ridículo: “o ca-ri-nha que es-tou fi-can-do!”. Se minhas amigas de infância me ouvissem falar assim... Todas bem casadas, filhos bem criados! Diriam: “Analice, que houve com você?” O que houve com você! O divorcio, querida! As velhas traições, a carência de estar sozinha em meu chatô! O que houve! Todo comportamento que foge a regra é ligeiramente censurado com a célebre frase: “o que houve?” Ouvi isso a infância inteira! Estava sozinha com o gatinho do 3º B, “o que houve?”, fugi da aula para ir ao cine, “o que houve?”, estava namorando no elevador do prédio, “o que houve?”, resolvi fazer parte do DA de minha universidade, “o que houve?”. Minhas amigas mais novas se me ouvissem dizer “o carinha que estou ficando!”, também me diriam “o que houve?” Não! Elas ririam da minha necessidade insuportável de parecer atemporal! No fim das contas não me enquadro em lugar nenhum! Larguei o namorado pela terceira vez, recusei o convite para o show, adiei o almoço... Estou fora! Definitivamente estou totalmente fora! Vou ficar aqui “no céu com minha mãe estarei”. Já tentei apelar para a religião, ver se tomava prumo! Católica, evangélica, budista, espírita... Fiquei indecisa! Nada de coisas para confundir mais minha cabeça! No momento, preciso mesmo é de solidão. “Ah! Se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco...” Jhonny Alf! Maravilhoso! Dancei tanto ao som de Jhonny Alf! Eu e Regiane! Íamos às festas juntas, embebedávamos juntas, mas depois de umas coisas mal ditas ela se foi! Pensou equívocos ou não seriam equívocos? Nunca refleti sobre isso! Aliás, nunca tinha refletido sobre nada. Reflexão, só depois dos 35, quando as coisas começam a ter um peso diferente! E depois, esquece! Melhor nem pensar! Mas as ideias ficam amofinando meu juízo! Ai! Adoro essa do Zé! “Eu entendo a noite como um oceano que banha de sombras o mundo de sol”, tão alucinógenas as músicas de Zé! Feito os cigarrinhos que Jonas me dava na época da universidade. Esse até quis casar comigo, mas o Lúcio, aquele desgraçado! Apareceu primeiro, desgraçado. Tinha até a cara bonitinha! Recitava Carlos Drummond como se fosse o próprio! Fui atrás de Drummond e achei noites em claro! “Lição de coisas”. Quando vejo aqueles escritos, cartas e cartas jurando amor shakespeariano. Pai e mãe falando em bom casamento e boa família. Bom rapaz! Tão bom que no primeiro ano de casado, peguei com o advogado transando no jardim do vizinho! Era viado! O sacana hipócrita nem foi homem para assumir! Ganhei uma bolada, tudo pela moral e bons costumes! Chorei horrores! A gravidez de seis meses? Interrompi! In-ter-rom-pi! In-ter-rom-pi! Jesus Cristo há de entender! Se é que existe inferno, o máximo é eu ir para lá! Pior que minha vida sem perspectiva não há de ser! Maisa, “meu mundo caiu”, que chique! Eu aqui, tomando um uísque, odeio uísque, mas é chique! Ouvindo Maísa e deprimidíssima, deprimidérrima, deprimente! O telefone já tocou nem sei quantas vezes. Deve ser o porteiro! Tão preocupado! Acha que vou morrer, o coitado! Só por causa de uns comprimidinhos a mais outro dia! Tem sido cada vez mais difícil dormir, aquele sono gostoso. Queria dormir bem dormido! Mas as ideias! Queria mesmo era ser a Raissa que Lygia colocou no aquário! Quente, irônica, perdida! Mas meu aquário é moderno! Tem ar-condicionado! Graças a dinheirama que Lúcio pagou pelo meu silêncio. Devia mesmo era dizer pra outra mulherzinha dele. Já imagino a cena, a pobrezinha negando, chorando, perguntando “é verdade, Lucinho? Fala que é mentira!” Nasceu pra sofrer, morrer enganada! Desfila com ele como se fosse um primor de macho! E como transa mal! Eu... cheia de verdade e só! É de se pensar se a mentira não vale mais! Mas não importa, falei o que não devia, vi o que não devia, fiz o que não devia! O que está feito, está feito! O negócio é esse! Arre! E os comprimidos que já não dão vencimento. Quero morrer não, mas se esse não fizer efeito, tomo o resto da caixa inteira. Só pra ser encontrada com essa camisola deslumbrante que Cecília me deu! Ia ser chique ser acordada por meu médico M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O! Mas é muito risco pra muito pouco homem! Vale tanto não! Só mais um, e mais um golinho de uísque. Hum, essa mistura não é muito bacana! Mas, parei! Beber por causa de tanta frustração até cansa! E também, dessa vez quero ver tudo, sentir tudo. Vou chamar o porteiro com voz de Ava Gardner, não, Sônia Braga! Deitar no chão, delírio, loucura! E chega desse papo qualquer coisa! Deixa eu pra lá de marrakech! Mexe, mexe!

Carolina Moraes