quarta-feira, 15 de maio de 2013


“Especiais”

             Saiu apressada... Queria pegar o ônibus das seis e já estava atrasada. Ela mesma era um atraso com aquela sua perna de metal que teimava em não flexionar o joelho. Trabalhava em uma loja de embalagens e dividia o turno com uma colega que mal olhava para ela. Não era feia, mas a pouca beleza que tinha não sobrepunha a frieza de sua perna mecânica. Chamava-se Aurélia! Os cabelos loiros escorriam pelos olhos aproveitando que as mãos ocupadas não podiam os prender atrás das orelhas. Tinha um corpo bem desenhado e se não fosse a maldita deficiência, teria... teria! Gaguejava toda só em pensar!

            Chegou ao ponto de ônibus com uma dificuldade diferente da costumeira. É que agora o maldito joelho estava emperrando e isso complicava sua locomoção! Teria que esperar até o fim do mês para então fazer o conserto. Ofegante, depositou a bolsa e os livros no lugar cedido por um moço lindo que mal a olhara nos olhos! Agradeceu constrangida e sentou-se silenciosa, observando as mesmas pessoas de todos os dias... E sempre eram as mesmas, com o mesmo semblante de pena, a mirar sua perna defeituosa. Segurou os livros com força e apertou-os contra o peito! Tinha raiva de si mesma por ainda se incomodar com os olhares e suas intenções de compaixão mascaradas pela solidariedade! Havia oito anos desde que se acidentou e ainda aquele aperto, a angústia teimosa e os olhos, insistentes em lacrimejar!

            Seu ônibus chegou apinhado de gente apressada, impaciente com a sua demora em vencer os degraus irritantes! Tantos! Três degraus intermináveis! Oh! Deus! Como odiava aqueles degraus. Antigamente subia sem nem dar por eles, tão displicente, corriqueira, feliz como uma adolescente no auge de seus 17 anos! Mas hoje, especialmente hoje, estava tudo tão mais difícil! O joelho teimava em não dobrar, obstinado em sua posição! Uma senhora se ofereceu para segurar sua bolsa e os livros que ela deu sem se dar ao luxo de recusar! Depois do calvário, sentou-se no local reservado a pessoas como ela. Sentou com os olhos baixos, muda e constrangida! Sempre esse maldito constrangimento, aquela vergonha de pesar mais que os outros, aquele medo de ver nos olhos das pessoas a sua limitação estampada como algo que incomoda e atrapalha a rotina dos que são ditos normais.

            Precisava ser otimista. Afinal, as coisas estavam melhorando! Estava trabalhando em um supermercado, embalava presentes e isso era ótimo! Usava as valiosas mãos que antes nem valorizava tanto! Deixara de ser uma inútil a se arrastar pela casa, ouvindo as queixas da tia! Está certo que na primeira oportunidade, suas colegas de trabalho davam um jeitinho de deixar escapar que depois dessas tais cotas para portadores de necessidades especiais, muita gente boa pro serviço tinha ficado desempregada! “A Jane saiu pra você entrar! A coitada agora está se vendo doida com a filha de cinco anos pra criar sozinha! Desde que foi mandada embora não arrumou trabalho nenhum! Mil vezes perder a mão que ficar sem emprego!” Certa vez, pensou até em se desculpar por toda aquela situação, mas não houve tempo, pois logo as poucas colegas que restaram foram substituídas por um outro tanto de mulheres normais e um outro tanto bem maior de deficientes! Era a lei! Deficiente agora não era mais deficiente! O nome agora era portador de necessidades especiais, e apesar de ainda não se achar uma coisa nem outra, preferia mil vezes ser chamada assim. Era mais digno de respeito. Ficou toda emocionada quando leu a reportagem dessa lei no jornal da vizinha e foi através da mesma que viu as ofertas de emprego e começou a trabalhar no mercado.

Iria completar dois meses no novo emprego e ainda não fizera muitos amigos. Não por falta de vontade, na verdade a questão era bem outra! Aurélia dividia o turno com uma moça normal que mal falava com ela! Seu nome era Marisa e vivia lixando as unhas com aquele batom vermelho encarnado que chamava mais atenção que os cabelos oxigenados. Trabalhavam juntas das oito da manhã à uma da tarde e, durante todo esse tempo, trocavam umas poucas palavras que não dariam para encher uma folha de caderno. Na verdade não tinham muito assunto e por mais que Aurélia se esforçasse, nunca conseguia mais que afirmativas e negativas secas!

Chegou pontualmente como sempre, apesar do maldito joelho, abriu o setor de embalagens e esperou Marisa, sempre atrasada. Mas nesse dia ela não veio. Seus olhos procuravam ansiosos pela chegada da colega que não vinha. O mercado ainda não tinha sido aberto e logo os clientes começariam a chegar. Junto com eles viriam as gorjetas, os sorrisos e promessas de algo mais, tudo para Marisa e seu batom chamativo cheio de malícia. Não sabia rir como ela, não tinha a mesma cara.

Foi quando ele veio silencioso e ficou a observá-la. De início, como sempre, sentiu-se constrangida e esperou sem muito pestanejar que o homem desviasse os olhos de seus olhos como era comum ver os rapazes fazerem, mas, estava atrás do balcão e protegida pela placa de madeira, por um momento pôde esquecer de sua condição e aos poucos foi se deixando envolver pelo sorriso tão jovial. Há tempos que não se sentia viva como mulher, pois sua deficiência, além de tudo, afastava qualquer possibilidade de relacionamento. Por isso, viu-se tentada a corresponder ao sorriso, estava mesmo decidida a fazê-lo e como não tivesse coragem, baixou os olhos mais uma vez. Acho que pensou que seu medo jamais lhe daria uma chance de saber se de fato teria sido bom!

E foi nesse entrementes que a coisa toda inteira se modificou. Ele caminhava para ela e o fazia com plenitude de gestos e olhares. Seu corpo estremeceu inteiro. Estava em pânico, paralisada diante do imprevisto, das possibilidades...

Aí ele chegou, sorriu e não se fez entender. Não falou. Gesticulou e nesse jogo Aurélia chegou a pensar que ele a tomava como surda, chegou mesmo a dizer ofendida que não o era, quando percebeu... Pensou que ele estivesse a zombar dela, mas não! Sentiu-se uma completa idiota ao notar que ele era surdo-mudo. Ele era o surdo, o deficiente, o portador de necessidades especiais! Aquilo era absurdo. Jamais a situação tinha sido vista por ela daquela maneira! Era como se ela não fosse também uma deficiente, como se a deficiência dele fosse pior que a sua... Estava desnorteada ao perceber que sentia todas aquelas coisas e procurava rearrumar tudo que já havia arrumado horas antes. Agora sim sabia! Ele só se aproximara porque sabia de sua perna aleijada. Ele sentiu-se igual a ela e isso era muito desaforo! Ser comparada a um surdo, ser cortejada por um surdo! Queria sumir dali. Seus olhos fugiam dos olhos surdos do homem que tentava se comunicar e não encontrava resposta! As mãos de Aurélia tremiam, seus braços penderam sobre o corpo e as caixas e embalagens desabaram como tudo a sua volta. Ele era surdo!

Em uma corrida desembestada, ela pegou a sua bolsa, seus livros e fugiu mancando do mercado repleto de pessoas. Correu para longe do homem, para longe de si mesma e das outras deficiências que enxergara em si naquela hora. O homem mudo não ouviu seu grito rouco, em contrapartida pôde ler em seu rosto a expressão do pavor que a fez fugir. Até agora ele deve estar parado diante do balcão, procurando a razão que desfez o sorriso da moça, se perguntando o que havia feito de errado.

Desde aquele dia, Aurélia nunca mais voltou. Decidiu que pessoas “especiais” eram “especiais” demais, sensíveis demais, preconceituosas demais... Preferiu se enfurnar novamente dentro de casa, a se arrastar pelas horas de dias intermináveis e esquecer!

quinta-feira, 2 de maio de 2013





Era a maçã

Era quase uma dor física. Os pensamentos espasmódicos flutuavam em torno da figura dela, ela tão distante, ela tão presente. Mesmo diante de tantas, em tantas, era nela que o pensamento teimava em pensar. E por mais que ele negasse, resistisse, ela vinha como verdade absoluta, feito um turbilhão a disparar o coração, vidrar os olhos como uma bebida alucinógena, como um cigarro que vicia. Se ao menos ela fosse um vício, com todas as cargas negativas que só um vício pode ter... Se ao menos ela fosse ruim. Seria tão mais fácil fechar a porta, deixar morrer.

Tentava a todo custo encontrar mazelas a fim de justificar o esquecimento. Era necessário esquecer. Mas ele sabia de quem ele estava falando e por isso mesmo lembrava o jeito manso de enrolar os cabelos longos, a mania leve de enlaçar as pernas entre as outras, como a dar um nó. Nó que o ataria para sempre! Os olhos cor de mel, os dedos esguios, as unhas sem pintura... ela inteira não tinha pintura e talvez fosse isso que fascinasse, enfeitiçasse. Ela tão ideal, tão promissora, tão diferente...

A dor era mesmo física, faltava-lhe o ar, os sentidos estavam conturbados, urgiam calmaria! Ele inteiro sentia dor por tanto querer! O que tinha de sentir outros cheiros? Justificava seus instintos de homem, era a regra geral, afinal! Mas ele tão inflexível, ela tão passional, ele tão proibido, ela tão espontânea...  

Não podia! Não era certo. As vocações eram outras, assim como os caminhos... mas houve uma concessiva a desmoronar tudo. Ou teria sido uma adversativa com vias de conclusão? O que se sabe é do que se sentiu antes da dor. Ela, a inocente. Ele, o predador. O santo, o quase padre. O pecador, o quase homem. Apesar da ausência de ações e palavras, o pensamento era um sertão imenso de desejo queimando como algo seco e constante. Eva, tão retirante, tão retirada! Eva, tocando piano e toda um silêncio só! Chegara muda e firme, arauto de inquietações. Eva fértil, convidando ao pecado.

Sem dizer palavra, fazia-o tremer, sem ao menos tocar fazia-o sentir coisas já esquecidas. Um único toque e tudo seria nada! Foi quando, diante do piano, a tecla emperrou e a música que inundava a sacristia estancou como um ferimento nobre, feito à bala. Foi preciso puxar, se achegar, estancar...

O que se deu depois foi de um lirismo erótico sem igual! Ele ao lado dela, a tecla teimosa, as unhas sem pintura, a concessiva que imperou diante do braço roçando no outro braço, a boca salivando diante do reprimido... E ela, Eva inocente, de nada se apercebia e deixava que os cabelos envolvessem o pescoço dele. Ele Adão, quase padre no conhecer, dono de um desejo imantado mesmo sem nunca ter conhecido uma mulher. E os cabelos atando-o ao desejo, e os olhos chamando-o sem piscar...

Era quase uma dor física. Quase uma dor física que o fez desfalecer ao lado dela... que sentada ao banco, olhava desentendida. Ele arfante, ela, Eva desconhecida. Face a face, a um toque das mãos... houve o toque das mãos. E ele e ela... Eva tão inocente, ele tão Adão... Ergueram-se concomitantemente e ao passo em que ele recuava, ela incidia sobre o desejo violento. Eva descobridora! Eva pele na boca, beijo no seio...

Era quase uma dor física. Sexo no sexo, a concessiva diante de santos, anjos e castiçais. Eva real, unânime como um vício, gozo como descoberta. Eva, maçã! Ele, Adão inteligível. Ela, leve; ele suicida!
 
Carolina
2009