Um fim mal acabado
Seu nome era Constança. Suave como a pluma,
falava a respeito da crise mundial, apontando soluções sempre impossíveis e
convocando soldados para sua marcha surda. Os estudantes passavam por ela e
olhavam como se fosse doida. Depois de horas a fio tecendo teorias a respeito
da desigualdade social, seca no nordeste, desemprego e coisas assim, descia do
púlpito e seguia muda e só. Marchava sempre só. Estudávamos na mesma
universidade. Ela fazia Filosofia, falava francês e gostava de discutir
maneiras de resolver problemas insolúveis. Eu fazia Engenharia Civil e estava
mais interessado na urbanização desenfreada que ela tanto criticava. Estagiava
na construção de alguns condomínios de casas e apartamentos para funcionários
públicos e precisava desse impulso para estabilizar de certo modo minha
posição. A formatura estava próxima e muito ainda estava por fazer. Éramos
completamente opostos e talvez por isso, apesar de meu interesse nunca tenha
ousado me aproximar. Ainda assim, com tantas diferenças, aconteceu de a gente
se encontrar. Como disse, ela marchava só, chovia, e nessas horas sempre chove.
Eu parei meu carro financiado para dar-lhe carona. Os famigerados carros que
ela tanto culpava pelos problemas ambientais de bla bla bla. Hoje, apesar de
estar na moda, ninguém se preocupa muito com isso. O susto foi tamanho que a
fez emudecer. Ela tão repleta de teorias e retóricas emudeceu diante mim
acenando para que entrasse. Hesitou, mas entrou indecisa. Olá! Disse querendo
ser natural, e aparentando naturalidade nenhuma. Ela me deu um sorriso de lado,
um pouco vazio. Conheço você dos discursos inflamados na Universidade. Ela não
se voltou para mim um segundo sequer e reparei que estava constrangida. Já
reparei em você apreciando “os discursos inflamados” sempre de longe. Vive
sempre sem tomar partido de causa nenhuma? Nem sempre. Eu disse rindo por
sorrir. Tomo partido de causas menores. Nunca pretendi mudar o mundo. Ela se
virou para mim indignada. Foi a primeira vez que pude fitar seu rosto tão perto.
Quase bato meu carro financiado embevecido por aqueles olhos azuis lindos.
Lindíssimos. Ouso dizer que se o pai de Capitu tivesse visto esses olhos, Dom
Casmurro teria se perdido por uma Constança e seus olhos de mar. Um mar sem
ressaca, vale ressaltar! Nos perdemos no tempo, meio atarantados por causa da
situação. Era um não sei o quê que vinha de não sei onde. Engraçado lembrar. E
foi engraçado viver, porque rimos e toda a tensão causada por divergências
ideológicas se esvaiu diante dos olhos. Meus e dela. Decerto que meus olhos não
eram lá essas coisas. Um castanho despretensioso perde lugar para qualquer par
de olhos azuis ou verdes à moda europeia. Nem falo dos cabelos. Apesar de
lisos, não eram loiros como os dela. Ah! Paradoxo! Constança nórdica e eu
latino. Sorri mais e ela indagou curiosa. Expliquei a contradição e sorri mais
ainda. Sorrimos os dois e foi bom! Ela apontou o lugar com o dedo e parei por
impulso. Constança desceu do carro militante e rebelde. Agradeceu com um aceno
sutil e sumiu na multidão. E pensei que teria sido maravilhoso se tivesse sido
minha. Mas as ideologias eram um mal irremediável. Ela queria mudar o mundo e
eu... bem, eu não queria. Hoje, anos depois, ela vive em um condomínio
construído por mim, trabalha como professora e é mãe de três filhos. Seu marido
é dono de uma frota de táxi e pelo que vi, não deu para saber se também sonhava
em mudar o mundo.
POxa!!! Muito massa! As contradições....
ResponderExcluirRsrsrs! Que bom que gostou, Cine! ;)
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