“Especiais”
Chegou
ao ponto de ônibus com uma dificuldade diferente da costumeira. É que agora o
maldito joelho estava emperrando e isso complicava sua locomoção! Teria que
esperar até o fim do mês para então fazer o conserto. Ofegante, depositou a
bolsa e os livros no lugar cedido por um moço lindo que mal a olhara nos olhos!
Agradeceu constrangida e sentou-se silenciosa, observando as mesmas pessoas de
todos os dias... E sempre eram as mesmas, com o mesmo semblante de pena, a
mirar sua perna defeituosa. Segurou os livros com força e apertou-os contra o
peito! Tinha raiva de si mesma por ainda se incomodar com os olhares e suas
intenções de compaixão mascaradas pela solidariedade! Havia oito anos desde que
se acidentou e ainda aquele aperto, a angústia teimosa e os olhos, insistentes
em lacrimejar!
Seu
ônibus chegou apinhado de gente apressada, impaciente com a sua demora em
vencer os degraus irritantes! Tantos! Três degraus intermináveis! Oh! Deus!
Como odiava aqueles degraus. Antigamente subia sem nem dar por eles, tão
displicente, corriqueira, feliz como uma adolescente no auge de seus 17 anos! Mas
hoje, especialmente hoje, estava tudo tão mais difícil! O joelho teimava em não
dobrar, obstinado em sua posição! Uma senhora se ofereceu para segurar sua
bolsa e os livros que ela deu sem se dar ao luxo de recusar! Depois do
calvário, sentou-se no local reservado a pessoas como ela. Sentou com os olhos
baixos, muda e constrangida! Sempre esse maldito constrangimento, aquela vergonha
de pesar mais que os outros, aquele medo de ver nos olhos das pessoas a sua limitação
estampada como algo que incomoda e atrapalha a rotina dos que são ditos
normais.
Precisava
ser otimista. Afinal, as coisas estavam melhorando! Estava trabalhando em um
supermercado, embalava presentes e isso era ótimo! Usava as valiosas mãos que
antes nem valorizava tanto! Deixara de ser uma inútil a se arrastar pela casa,
ouvindo as queixas da tia! Está certo que na primeira oportunidade, suas
colegas de trabalho davam um jeitinho de deixar escapar que depois dessas tais
cotas para portadores de necessidades especiais, muita gente boa pro serviço
tinha ficado desempregada! “A Jane saiu pra você entrar! A coitada agora está
se vendo doida com a filha de cinco anos pra criar sozinha! Desde que foi
mandada embora não arrumou trabalho nenhum! Mil vezes perder a mão que ficar
sem emprego!” Certa vez, pensou até em se desculpar por toda aquela situação, mas
não houve tempo, pois logo as poucas colegas que restaram foram substituídas
por um outro tanto de mulheres normais e um outro tanto bem maior de deficientes!
Era a lei! Deficiente agora não era mais deficiente! O nome agora era portador
de necessidades especiais, e apesar de ainda não se achar uma coisa nem outra, preferia
mil vezes ser chamada assim. Era mais digno de respeito. Ficou toda emocionada
quando leu a reportagem dessa lei no jornal da vizinha e foi através da mesma
que viu as ofertas de emprego e começou a trabalhar no mercado.
Iria completar dois
meses no novo emprego e ainda não fizera muitos amigos. Não por falta de
vontade, na verdade a questão era bem outra! Aurélia dividia o turno com uma
moça normal que mal falava com ela! Seu nome era Marisa e vivia lixando as
unhas com aquele batom vermelho encarnado que chamava mais atenção que os
cabelos oxigenados. Trabalhavam juntas das oito da manhã à uma da tarde e,
durante todo esse tempo, trocavam umas poucas palavras que não dariam para
encher uma folha de caderno. Na verdade não tinham muito assunto e por mais que
Aurélia se esforçasse, nunca conseguia mais que afirmativas e negativas secas!
Chegou pontualmente
como sempre, apesar do maldito joelho, abriu o setor de embalagens e esperou
Marisa, sempre atrasada. Mas nesse dia ela não veio. Seus olhos procuravam
ansiosos pela chegada da colega que não vinha. O mercado ainda não tinha sido
aberto e logo os clientes começariam a chegar. Junto com eles viriam as
gorjetas, os sorrisos e promessas de algo mais, tudo para Marisa e seu batom
chamativo cheio de malícia. Não sabia rir como ela, não tinha a mesma cara.
Foi quando ele veio
silencioso e ficou a observá-la. De início, como sempre, sentiu-se constrangida
e esperou sem muito pestanejar que o homem desviasse os olhos de seus olhos
como era comum ver os rapazes fazerem, mas, estava atrás do balcão e protegida
pela placa de madeira, por um momento pôde esquecer de sua condição e aos
poucos foi se deixando envolver pelo sorriso tão jovial. Há tempos que não se
sentia viva como mulher, pois sua deficiência, além de tudo, afastava qualquer
possibilidade de relacionamento. Por isso, viu-se tentada a corresponder ao
sorriso, estava mesmo decidida a fazê-lo e como não tivesse coragem, baixou os
olhos mais uma vez. Acho que pensou que seu medo jamais lhe daria uma chance de
saber se de fato teria sido bom!
E foi nesse entrementes
que a coisa toda inteira se modificou. Ele caminhava para ela e o fazia com
plenitude de gestos e olhares. Seu corpo estremeceu inteiro. Estava em pânico,
paralisada diante do imprevisto, das possibilidades...
Aí ele chegou, sorriu e
não se fez entender. Não falou. Gesticulou e nesse jogo Aurélia chegou a pensar
que ele a tomava como surda, chegou mesmo a dizer ofendida que não o era,
quando percebeu... Pensou que ele estivesse a zombar dela, mas não! Sentiu-se
uma completa idiota ao notar que ele era surdo-mudo. Ele era o surdo, o
deficiente, o portador de necessidades especiais! Aquilo era absurdo. Jamais a
situação tinha sido vista por ela daquela maneira! Era como se ela não fosse
também uma deficiente, como se a deficiência dele fosse pior que a sua...
Estava desnorteada ao perceber que sentia todas aquelas coisas e procurava
rearrumar tudo que já havia arrumado horas antes. Agora sim sabia! Ele só se
aproximara porque sabia de sua perna aleijada. Ele sentiu-se igual a ela e isso
era muito desaforo! Ser comparada a um surdo, ser cortejada por um surdo! Queria
sumir dali. Seus olhos fugiam dos olhos surdos do homem que tentava se
comunicar e não encontrava resposta! As mãos de Aurélia tremiam, seus braços
penderam sobre o corpo e as caixas e embalagens desabaram como tudo a sua
volta. Ele era surdo!
Em uma corrida
desembestada, ela pegou a sua bolsa, seus livros e fugiu mancando do mercado
repleto de pessoas. Correu para longe do homem, para longe de si mesma e das
outras deficiências que enxergara em si naquela hora. O homem mudo não ouviu
seu grito rouco, em contrapartida pôde ler em seu rosto a expressão do pavor
que a fez fugir. Até agora ele deve estar parado diante do balcão, procurando a
razão que desfez o sorriso da moça, se perguntando o que havia feito de errado.
Desde aquele dia, Aurélia
nunca mais voltou. Decidiu que pessoas “especiais” eram “especiais” demais,
sensíveis demais, preconceituosas demais... Preferiu se enfurnar novamente
dentro de casa, a se arrastar pelas horas de dias intermináveis e esquecer!
Incrível habilidade de nos transportar para outra realidade. Seu texto me prende do início ao fim! E quantas vezes somos Aurélias... presas nas próprias imperfeições, intolerantes com as imperfeições alheias.
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