Do outro lado da rua
Trabalhava
em uma drogaria de seu bairro. Era pueril como toda gente, mas seu caminhar era
de uma leveza quase ingênua e sensual. Todo fim de tarde ela passava por mim,
nobre como uma qualquer. Eu a observava quase como um passatempo e ela,
achando-se incógnita, caminhava seu passo curto como a alcançar as nuvens em um
castelo distante no Olimpo. Sentia-me
tentado a segui-la, diminuir a distância, mas o medo... Esse famigerado! E se
de perto ela não fosse tão ideal como a ninfa de meu fim de tarde? Acreditei na
máxima – seria uma máxima? – de que todas as fantasias duram o instante que
passa, de modo que permaneci impassível, do outro lado da rua. Não sei se
disse, mas era casado e planejava ter o primeiro filho... acho que ainda, naquela
época, amava minha esposa
Mas o que se passou...
Voltemos ao fim de
tarde. Apreciar tal caminhar aos poucos se tornou vício e quando ela demorava a
passar sentia a angústia ansiosa e apaixonada dos enamorados. Até que um dia
ela, de fato, não passou. Como era de costume, esperei. E se mais esperasse,
morreria. Decidi ir à drogaria, almejando que lá ela estivesse, porém pensava
mil atrocidades a fim de justificar sua demora... Mal dos apaixonados que
imaginam tragédias, as mais loucas possíveis, diante dos imprevistos. Só então me lembrei de
que nada sabia sobre ela, só do seu caminhar. Não tive meios de perguntar por um
nome desconhecido. Senti-me um Quixote diante do inusitado. Fiquei andando de
um lado para o outro tentando articular ideias para sair daquela situação de
espera silenciosa.
Nada houve. Penso que
durante todo tempo nem pensei. Pelo menos nada proveitoso. Se fosse escritor de
ficção, imaginaria uma solução! Esses caras têm a mente fervilhante de ideias!
Lembrei das aulas de redação de dona Maria Laura... esqueci... era péssimo em
redação! Fui para casa preocupadíssimo com minha ninfa de caminhar tão meu e,
ao mesmo tempo, arrependido por não ter escrito mais ficções. Cheguei à
conclusão cabal de que imaginação é tudo. Não dormi. Mal falei. Fumei, e um
cigarro atrás do outro. Minha esposa, já falei dela? Sim, eu era casado e trabalhava
em uma loja de laticínios e, apesar de ganhar pouco, tinha o cargo de subgerente,
o que de certo modo me proporcionava uma leve sensação de notoriedade. Bem de
leve! Minha esposa amava dizer às amigas “Raul é subgerente”, melhor que dizer
vendedor... O rótulo nas relações sociais é importante. Minha esposa estranhou
meu mutismo, perguntou sem cessar até que inventei uma desculpa. Estava mestre
nisso. Fiquei assim depois do caminhar... Chegava em casa e ficava
reconstituindo o caminhar dolente de minha amada incógnita e inventava
desculpas, as mais diversas, para justificar a distância. Com o tempo as
desculpas foram ficando escassas e tornaram-se absurdas. Por vezes pensava
“essa ela não vai acreditar”, mas ela sempre acreditava. Comecei então a pensar
que as mulheres acreditam no que lhes convém, pois já brigamos por muito menos.
Mesmo que quisesse
dizer a verdade, diria o quê? “Querida, acho que me apaixonei por alguém que
não sei o nome e nem sequer troquei um bom dia de longe...” Não! Muito absurdo!
Nunca ouvi dizer uma coisa dessas! Preferia, então, as desculpas absurdas! Era
menos ridículo!!
Dia seguinte fui ao
trabalho mais cedo e decidi comprar Band-aid! Descobri que precisava de Band-aid
e de gaze também. Nem me dei conta quando já estava sendo atendido por uma moça
que olhava pra mim com cara de curiosa e desentendida, imagino que gostaria de
saber o que eu procurava tanto dentro da farmácia. Disparei que estava
necessitadíssimo de ir ao banheiro. Ela riu e eu me senti mais idiota que o
mais idiota que já conheci! Educada, a moça me conduziu ao interior da
farmácia, dizendo que o uso do banheiro só era permitido a funcionários, mas
que abriria uma exceção diante de meu desespero. Entrei no banheiro tremendo inteiro.
Eu, um homem de quarenta e cinco anos, suando frio como um adolescente... Tentei
me situar. Estava no banheiro da drogaria em que ela trabalhava, e? E só!!
Trancado no banheiro tentava articular ideias para alcançar as respostas sem
parecer muito tresloucado!! Levei alguns minutos trancado, meio envergonhado,
decerto, mas estava mais preocupado em matar minha curiosidade – esse bicho
infeliz capaz de atormentar até o mais correto dos homens!!!
Tentando desenroscar o
fio do novelo em que me meti saí do banheiro casmurro e fui direto ao caixa. A
atendente me olhava como se fosse um insano. No fim das contas acho mesmo que
estava insano! Paguei o Band-aid e a gaze e saí sem querer sair. Passei o resto
do dia mal humorado. Droga de vida também! Cheguei abusado e dormi, dormi? Foi
aí que decidi ir direto ao ponto!! Isso mesmo! Amanhã iria até lá e se ela não
estivesse, perguntaria diretamente por ela. Diria que sou da família e tinha
notícias de uns parentes nossos. Que mal há nisso? Mal consegui dormir de tanta
ansiedade. Perguntava-me porque não tinha tomado essa decisão antes!!
E assim fiz!! Antes de
a drogaria abrir, lá estava eu de prontidão. Firme em meus propósitos. A
atendente me viu assim que cruzou a esquina. A essa altura já estava me achando
um louco varrido. Tudo bem! Não importo mesmo! Tenho ouvido isso de meus
colegas a semana inteira. Um a mais, um a menos... não faz diferença!!! Perguntei
por ela... Sem nem citar o nome, indaguei pela outra funcionária. Pedi
informações, falei do desespero. Era primo dela, nossa avó estava muito doente,
queria vê-la antes de partir! Se bem lembro, ainda cheguei a derramar uma ou
duas lágrimas. Um artista!! A atendente, sempre me olhando com a convicção de
que eu era de fato louco, disse que não estava autorizada a dar informações a
respeito dos funcionários. Olhei com um ar de dó... Penso que comovi, pois logo
depois ela decidiu “vou abrir uma exceção, mas não vá dizer que fui eu quem deu
a informação! Não posso perder esse emprego!” Falou em tom de voz ameaçador! E
foi reclamando da dificuldade de se conseguir emprego hoje em dia e mais um
monte de coisas que não ouvi palavra, ansioso a espera do tal papel com o
endereço dela! No fim, falou dela, que estava adoentada. Seu nome era Dora!
Lindo!! Dora!! Falou como era reservada “Dora é moça muito calada. Quase não
fala, não tem amigos!” Ah! Minha Dora de caminhar tão meu!! Agora, além de um
caminhar, tinha um nome!! Ela não era mais uma incógnita!! Saí da farmácia tão
atarantado que nem fui trabalhar, mas sim direto ao endereço dela! Longe pra
burro, diga-se de passagem! Mas tinha que ser!! As melhores coisas são as mais
difíceis!! Dora, Dorinha!!
Foram três as conduções que peguei em
direção a sua casa! E quando lá cheguei, vim embora! Voltei esbaforido como um
adolescente diante da primeira namorada!! Depois de velho estava ficando besta!
Senti-me um parvo por ser tão medroso, e conclui que era a euforia do primeiro
momento. E assim se passaram os outros dias – três ao todo – em que ficava
horas a fio plantado em frente ao seu prédio e ela nada de aparecer! Ah! Dora,
Dorinha!! Saía do trabalho mais cedo e ia pra frente de sua casa, esperar... a
coragem chegar, o medo ir embora, o destino me dar uma mãozinha que afinal a
situação não era fácil. Iria subir, bater em sua porta e dizer o quê? “Olá, me
chamo Raul e estou vidrado em seu caminhar. Sei que não me conhece, mas...”
Nossa!! Cada ensaio era pior que o outro!! E assim fiquei dias e dias! E me
intrigava o fato de não a ver! Ela não saía!
Foi quando tudo se
desenrolou feito novelo de lã! Era uma tarde despretensiosa. A essa altura
minha mulher já era ex! E nem dei por mim quando cheguei em casa e achei tudo
mudo! Os poucos armários que ficaram estavam quase que vazios. A infeliz se foi
levando tudo e nem sequer deixou um adeus. Pensei na música do Chico e cheguei à
conclusão de que trocando em miúdos, foi melhor assim mesmo!!! Cessaram as
desculpas! Estava livre para minha musa enclausurada que na tarde
despretensiosa deu o ar da graça!! Ar nada! A coitada nem respirava! Saiu de
casa na ambulância direto pra o Hospital! Fiquei meio pasmo, a cara apatetada,
vendo a ambulância seguir desembestada dando aquele seu grito de desespero
pedindo passagem!
Fiz muitas perguntas a
duas vizinhas que me falaram tudo sem muito pestanejar! “Dora mora sozinha, a
pobrezinha! Trabalha feito uma condenada! Não é muito de sair! Namorado? Não!
Sempre foi muito reservada!! O Hospital é o Ernesto Campos de Paiva!” Rumei
insano para o Hospital! Feliz por informações valiosas e temeroso pela saúde de
minha amada Doralinda, Doraminha! Identifiquei-me como primo, o mesmo da
mentira que contei na drogaria! O médico, um magro de hálito horrível com cara
de plantão mal acabado, deixou-me a par de tudo! E o tudo ainda era muito vago,
porque de tudo só se sabia que Dora estava com uma doença, que pra variar não
se sabia qual era! Quase morri do coração quando o doutor me falou que não
sabia dos riscos!! Pedi pra visitar. E foi suando frio que entrei na enfermaria.
Ela estava meio sonolenta e riu um riso que achei o mais lindo de toda a
humanidade! Reparei que meus dedos não obedeciam muito às minhas ordens e optei
por deixá-los em meus bolsos! Só me faltava agora ficar rouco, o que por Jesus
não aconteceu! Daí falei umas bobajadas que prefiro nem comentar, o que sei é que
quando resolvi falar o porque de eu estar ali, a coitada deu um ganido meio
murcho, dois tremeliques e morreu! Fiquei pasmo escutando o diabo do barulhinho
da máquina que fazia um tuuuuuuuu insistente que entrava pelo meu juízo me
deixando em estado de choque. Acho que fiquei ouvindo durante os três dias em
que fiquei internado no hospital sem ainda dar por mim, quanto mais pelo resto.
Carol, adorei seu texto... consegui viajar em suas palavras, consegui sentir a rua, a drograria, o andar da Dora... mas vc me arrazou mandando-a. rsrs ( Não se mata quem se ama!!!) Vc é um talento amiga... adoooooooooooooooro!!!
ResponderExcluirSucessos sempre!
Tenho tb um blog tá meio abandonado, vou dar um up grade e mandar para que vc possa dar uma olhada.
beijos
Claudia Elen
PS.: Voltarei para 'viajar' por suas palavras.
Cláudia!! Obrigada! Muitos amigos ficam entristecidos com o fim de Dora! Rsrsrs! Mas não conseguia ver outro que não esse! Estou adorando voltar a escrever! Mande suas publicações! Vou amar acompanhar seu blog!
ExcluirBeijo!
Carolina