segunda-feira, 29 de abril de 2013

Meu pé de laranja-lima

Não lembro do dia em que deixei de acreditar em fadas... Nem faço ideia do momento em que as fantasias deram lugar à outra coisa que não sei ao certo dizer o nome. O que sei é que houve um momento em que não conversava mais com os brinquedos e olhava para as pessoas, sabendo que elas também poderiam me fazer mal. A sensação de olhar para um pé de laranja-lima e perceber que ele não responde mais às nossas perguntas; que, na verdade, ele nunca respondeu; entender que as pessoas poderão nos decepcionar; que nossos pais não poderão impedir nosso sofrimento por mais que queiram... Acho que isso é crescer, sair do casulo e aprender a lidar com a realidade. Mas como crescer sem perder a ternura? Difícil isso!

Em seu livro “Meu pé de laranja-lima”, José Mauro de Vasconcelos fala dessa transição entre acreditar e deixar de acreditar em fantasia; entre ser pequeno e grande ao mesmo tempo; entre a incrível capacidade de sentir dor e reinventar-se depois dela. E tudo isso, através de uma narrativa envolvente que personifica o mágico universo psicológico de um menino fantástico como tantos que conheci e agora não lembro o nome. Longe de ser um livro para crianças, é um livro sobre crianças. Mais que isso! Sobre a criança que nós fomos e deixamos de ser. Por essa razão nos traz nostalgia, porque no fundo, no fundo, todos fomos um pouco parecidos com Zezé, cheios de sonhos e imaginação, buscando ser artistas de cinema com vontade de mudar o mundo;  aprendendo a lidar com as frustrações, engolidos pela realidade que nos faz perceber as falhas, o fato, a razão de tudo... e esquecer de quando ainda sonhávamos.
No filme homônimo, recém-lançado neste ano, o diretor Marcos Bernstein teve a árdua missão de encontrar um menino espirituoso a fim de dar vida a todo o mundo encantado que povoou o imaginário de inúmeros leitores que, como eu, se apaixonaram pelas aventuras do menino que tinha o diabo no corpo e apanhava por suas tantas travessuras; que tinha um amigo Portuga e um pássaro que assoviava dentro dele. João Guilherme Ávila é esse menino. E como ele o representou bem! Tanto que coube certinho na ideia que fazia dele quando ainda tinha 11 anos. José de Abreu, como era de esperar, dá um show ao personificar meu Portuga, apesar de não ser tão gordo como quando eu imaginava.

É redundante dizer que a obra cinematográfica não consegue captar toda a magia do livro, simplesmente porque quem fazia a magia de tudo éramos nós, leitores, que dávamos vida às páginas do José Mauro. Apesar disso, o diretor é feliz, porque consegue transmitir os dramas interiores do menino que precocemente deixa de ser criança. Através do corte do pé de laranja-lima e da morte de seu amigo Portuga, o garoto vai deixando de acreditar que a Europa fica no quintal de sua casa, para, finalmente, dizer de si para si, que sua árvore confidente nunca se comunicou com ele. Era sonho e, por essa razão, nunca foi real.
Nos custa crer que certos sonhos não eram reais... Dói perceber que nosso chão não era tão firme assim e que nossos referenciais poderiam não estar tão certos. Então, como crescer sem perder a ternura? Difícil mesmo isso! Poderia dizer que a obra de José Mauro de Vasconcelos fala desta perda da ternura, mas entendo que é justamente o contrário! O autor nos convida a sonhar novamente junto com o Zezé que ele foi, que nós fomos, que serão nossos filhos. E nos pede que olhemos para ele, para nós e nossos filhos com olhos de ternura, de quem os entende, porque um dia já fomos assim.

Em outros livros do autor, igual beleza e ternura são encontradas, como em “Vamos aquecer o sol” e “Doidão”. Recomendo os livros, o filme... Recomendo TERNURA!
 


Do outro lado da rua 
 
          Trabalhava em uma drogaria de seu bairro. Era pueril como toda gente, mas seu caminhar era de uma leveza quase ingênua e sensual. Todo fim de tarde ela passava por mim, nobre como uma qualquer. Eu a observava quase como um passatempo e ela, achando-se incógnita, caminhava seu passo curto como a alcançar as nuvens em um castelo distante no Olimpo. Sentia-me tentado a segui-la, diminuir a distância, mas o medo... Esse famigerado! E se de perto ela não fosse tão ideal como a ninfa de meu fim de tarde? Acreditei na máxima – seria uma máxima? – de que todas as fantasias duram o instante que passa, de modo que permaneci impassível, do outro lado da rua. Não sei se disse, mas era casado e planejava ter o primeiro filho... acho que ainda, naquela época, amava minha esposa
          Mas o que se passou...
          Voltemos ao fim de tarde. Apreciar tal caminhar aos poucos se tornou vício e quando ela demorava a passar sentia a angústia ansiosa e apaixonada dos enamorados. Até que um dia ela, de fato, não passou. Como era de costume, esperei. E se mais esperasse, morreria. Decidi ir à drogaria, almejando que lá ela estivesse, porém pensava mil atrocidades a fim de justificar sua demora... Mal dos apaixonados que imaginam tragédias, as mais loucas possíveis, diante dos imprevistos. Só então me lembrei de que nada sabia sobre ela, só do seu caminhar. Não tive meios de perguntar por um nome desconhecido. Senti-me um Quixote diante do inusitado. Fiquei andando de um lado para o outro tentando articular ideias para sair daquela situação de espera silenciosa.
         Nada houve. Penso que durante todo tempo nem pensei. Pelo menos nada proveitoso. Se fosse escritor de ficção, imaginaria uma solução! Esses caras têm a mente fervilhante de ideias! Lembrei das aulas de redação de dona Maria Laura... esqueci... era péssimo em redação! Fui para casa preocupadíssimo com minha ninfa de caminhar tão meu e, ao mesmo tempo, arrependido por não ter escrito mais ficções. Cheguei à conclusão cabal de que imaginação é tudo. Não dormi. Mal falei. Fumei, e um cigarro atrás do outro. Minha esposa, já falei dela? Sim, eu era casado e trabalhava em uma loja de laticínios e, apesar de ganhar pouco, tinha o cargo de subgerente, o que de certo modo me proporcionava uma leve sensação de notoriedade. Bem de leve! Minha esposa amava dizer às amigas “Raul é subgerente”, melhor que dizer vendedor... O rótulo nas relações sociais é importante. Minha esposa estranhou meu mutismo, perguntou sem cessar até que inventei uma desculpa. Estava mestre nisso. Fiquei assim depois do caminhar... Chegava em casa e ficava reconstituindo o caminhar dolente de minha amada incógnita e inventava desculpas, as mais diversas, para justificar a distância. Com o tempo as desculpas foram ficando escassas e tornaram-se absurdas. Por vezes pensava “essa ela não vai acreditar”, mas ela sempre acreditava. Comecei então a pensar que as mulheres acreditam no que lhes convém, pois já brigamos por muito menos.
Mesmo que quisesse dizer a verdade, diria o quê? “Querida, acho que me apaixonei por alguém que não sei o nome e nem sequer troquei um bom dia de longe...” Não! Muito absurdo! Nunca ouvi dizer uma coisa dessas! Preferia, então, as desculpas absurdas! Era menos ridículo!!
Dia seguinte fui ao trabalho mais cedo e decidi comprar Band-aid! Descobri que precisava de Band-aid e de gaze também. Nem me dei conta quando já estava sendo atendido por uma moça que olhava pra mim com cara de curiosa e desentendida, imagino que gostaria de saber o que eu procurava tanto dentro da farmácia. Disparei que estava necessitadíssimo de ir ao banheiro. Ela riu e eu me senti mais idiota que o mais idiota que já conheci! Educada, a moça me conduziu ao interior da farmácia, dizendo que o uso do banheiro só era permitido a funcionários, mas que abriria uma exceção diante de meu desespero. Entrei no banheiro tremendo inteiro. Eu, um homem de quarenta e cinco anos, suando frio como um adolescente... Tentei me situar. Estava no banheiro da drogaria em que ela trabalhava, e? E só!! Trancado no banheiro tentava articular ideias para alcançar as respostas sem parecer muito tresloucado!! Levei alguns minutos trancado, meio envergonhado, decerto, mas estava mais preocupado em matar minha curiosidade – esse bicho infeliz capaz de atormentar até o mais correto dos homens!!!
Tentando desenroscar o fio do novelo em que me meti saí do banheiro casmurro e fui direto ao caixa. A atendente me olhava como se fosse um insano. No fim das contas acho mesmo que estava insano! Paguei o Band-aid e a gaze e saí sem querer sair. Passei o resto do dia mal humorado. Droga de vida também! Cheguei abusado e dormi, dormi? Foi aí que decidi ir direto ao ponto!! Isso mesmo! Amanhã iria até lá e se ela não estivesse, perguntaria diretamente por ela. Diria que sou da família e tinha notícias de uns parentes nossos. Que mal há nisso? Mal consegui dormir de tanta ansiedade. Perguntava-me porque não tinha tomado essa decisão antes!!
E assim fiz!! Antes de a drogaria abrir, lá estava eu de prontidão. Firme em meus propósitos. A atendente me viu assim que cruzou a esquina. A essa altura já estava me achando um louco varrido. Tudo bem! Não importo mesmo! Tenho ouvido isso de meus colegas a semana inteira. Um a mais, um a menos... não faz diferença!!! Perguntei por ela... Sem nem citar o nome, indaguei pela outra funcionária. Pedi informações, falei do desespero. Era primo dela, nossa avó estava muito doente, queria vê-la antes de partir! Se bem lembro, ainda cheguei a derramar uma ou duas lágrimas. Um artista!! A atendente, sempre me olhando com a convicção de que eu era de fato louco, disse que não estava autorizada a dar informações a respeito dos funcionários. Olhei com um ar de dó... Penso que comovi, pois logo depois ela decidiu “vou abrir uma exceção, mas não vá dizer que fui eu quem deu a informação! Não posso perder esse emprego!” Falou em tom de voz ameaçador! E foi reclamando da dificuldade de se conseguir emprego hoje em dia e mais um monte de coisas que não ouvi palavra, ansioso a espera do tal papel com o endereço dela! No fim, falou dela, que estava adoentada. Seu nome era Dora! Lindo!! Dora!! Falou como era reservada “Dora é moça muito calada. Quase não fala, não tem amigos!” Ah! Minha Dora de caminhar tão meu!! Agora, além de um caminhar, tinha um nome!! Ela não era mais uma incógnita!! Saí da farmácia tão atarantado que nem fui trabalhar, mas sim direto ao endereço dela! Longe pra burro, diga-se de passagem! Mas tinha que ser!! As melhores coisas são as mais difíceis!! Dora, Dorinha!!
Foram três as conduções que peguei em direção a sua casa! E quando lá cheguei, vim embora! Voltei esbaforido como um adolescente diante da primeira namorada!! Depois de velho estava ficando besta! Senti-me um parvo por ser tão medroso, e conclui que era a euforia do primeiro momento. E assim se passaram os outros dias – três ao todo – em que ficava horas a fio plantado em frente ao seu prédio e ela nada de aparecer! Ah! Dora, Dorinha!! Saía do trabalho mais cedo e ia pra frente de sua casa, esperar... a coragem chegar, o medo ir embora, o destino me dar uma mãozinha que afinal a situação não era fácil. Iria subir, bater em sua porta e dizer o quê? “Olá, me chamo Raul e estou vidrado em seu caminhar. Sei que não me conhece, mas...” Nossa!! Cada ensaio era pior que o outro!! E assim fiquei dias e dias! E me intrigava o fato de não a ver! Ela não saía!
Foi quando tudo se desenrolou feito novelo de lã! Era uma tarde despretensiosa. A essa altura minha mulher já era ex! E nem dei por mim quando cheguei em casa e achei tudo mudo! Os poucos armários que ficaram estavam quase que vazios. A infeliz se foi levando tudo e nem sequer deixou um adeus. Pensei na música do Chico e cheguei à conclusão de que trocando em miúdos, foi melhor assim mesmo!!! Cessaram as desculpas! Estava livre para minha musa enclausurada que na tarde despretensiosa deu o ar da graça!! Ar nada! A coitada nem respirava! Saiu de casa na ambulância direto pra o Hospital! Fiquei meio pasmo, a cara apatetada, vendo a ambulância seguir desembestada dando aquele seu grito de desespero pedindo passagem!
Fiz muitas perguntas a duas vizinhas que me falaram tudo sem muito pestanejar! “Dora mora sozinha, a pobrezinha! Trabalha feito uma condenada! Não é muito de sair! Namorado? Não! Sempre foi muito reservada!! O Hospital é o Ernesto Campos de Paiva!” Rumei insano para o Hospital! Feliz por informações valiosas e temeroso pela saúde de minha amada Doralinda, Doraminha! Identifiquei-me como primo, o mesmo da mentira que contei na drogaria! O médico, um magro de hálito horrível com cara de plantão mal acabado, deixou-me a par de tudo! E o tudo ainda era muito vago, porque de tudo só se sabia que Dora estava com uma doença, que pra variar não se sabia qual era! Quase morri do coração quando o doutor me falou que não sabia dos riscos!! Pedi pra visitar. E foi suando frio que entrei na enfermaria. Ela estava meio sonolenta e riu um riso que achei o mais lindo de toda a humanidade! Reparei que meus dedos não obedeciam muito às minhas ordens e optei por deixá-los em meus bolsos! Só me faltava agora ficar rouco, o que por Jesus não aconteceu! Daí falei umas bobajadas que prefiro nem comentar, o que sei é que quando resolvi falar o porque de eu estar ali, a coitada deu um ganido meio murcho, dois tremeliques e morreu! Fiquei pasmo escutando o diabo do barulhinho da máquina que fazia um tuuuuuuuu insistente que entrava pelo meu juízo me deixando em estado de choque. Acho que fiquei ouvindo durante os três dias em que fiquei internado no hospital sem ainda dar por mim, quanto mais pelo resto.

           

domingo, 28 de abril de 2013




Quanto tempo dura sua dor? De repente você sofre e... olha para si mesma e percebe a urgência de recomeçar! Redescobrir as pequenas alegrias que insistem em fugir de você. As horas que se eternizam nos ponteiros de seu relógio, os sorrisos alheios que passam lembrando a toda hora que não são seus, que aqueles sentimentos não foram para você. Aí se esconde, porque não quer ser o alvo. E no meio da concha, “vocêcaramujo”, se revolve lambendo as feridas que ainda não cicatrizaram, mais que isso, revolveram chagas antigas, marcas de um passado já esquecido.

Mas... quanto tempo dura sua dor? Quanto tempo demora para você se olhar? Assumir os deslizes, a pena que sentiu de si mesma e decidir que em seu rosto, essa é a hora dos sorrisos? Aqueles que antes não eram para você?

Quando seu coração acalma, tudo vai se acomodando em algum lugar, mesmo que este lugar não seja ideal. Assim, os pedaços de mundo que compõem a sua vida vão serenando para que você se revigore e volte a caminhar. Mas junto com os primeiros passos, vem o medo de sentir toda a frustração de novo. Aí você hesita, recua, desvia...

Há as pessoas que nunca pulam a etapa da dor, e vivem a se torturar pelo que foi, impedidas de viver o que poderia ser. E Tomadas pelo temor de sofrer, elas sofrem como se isso fosse uma condição constante em suas vidas. É como se elas morressem em vida, engessadas pela ilusão de não sofrer mais.

Mas há aquelas que esquecem e retomam o ímpeto e recomeçam renovadas até que, num fim de tarde de um dia qualquer, elas vacilam e caem novamente. Essas pessoas se acostumaram a cair, aprenderam caindo, perderam muitas vezes o viço para ganharem cicatrizes muitas vezes profundas... Mas elas viveram, sentiram o gosto de enfrentar o medo e viver a intensidade das incertezas.

Porque, na verdade, o tempo da dor só dura até você descobrir que o medo, a qualquer momento, pode chegar e que não há receita para se usar estando diante dele... E no final das contas, o que há mesmo é sua vontade de viver e enfrentar o mundo.

FSA, 27 de fevereiro de 2013

sábado, 27 de abril de 2013


"Sempre sofri do mal irreparável da Literatura... Por conta dele, cada coisa em minha vida ganha significado diferente. E nessa perspectiva, as pernas não são apenas pernas, mas sim sustento, movimento, teia!
Esse vício me impele a descrever o indescritível, através de um olhar que recorta os extremos e captura a intensidade dos momentos mais íntimos por meio de palavras. Da dor ao marasmo, passo pela vida pulando de letra em letra, com a tonicidade das palavras que possuem significado próprio. Nada em mim é átono, nunca foi!"
(Carolina Moraes, dezembro de 2012)
A ciência do erro

Errar, desrespeitar prazos, cometer equívocos, enfim, frustrar alguém não é lá essas coisas. Quando nos deparamos com situações desta natureza, o desconforto em torno disso é inevitável. Nessas horas, reavaliamos se nossas metas foram bem traçadas em relação ao tempo determinado, se houve prevenção a respeito de possíveis imprevistos, se as nossas demandas eram realmente possíveis de serem realizadas, se a desatenção foi decorrente de uma sobrecarga ou abalo emocional, se o equívoco surgiu de uma falha de interpretação,
ou então, se, de algum modo, contribuímos para as expectativas excessivas de uma terceira pessoa em relação ao bom andamento de nossas ações.
Hoje, mais que nunca, somos programados para não errar, pois celulares, tablets e outros tantos recursos estão aí para nos lembrar do tanto que há para ser feito. Assim, reuniões, planejamentos e pendências não se perdem mais em meio à louca rotina do dia-a-dia. O problema é que, ainda assim, erramos. E a sensação que advém desse erro é péssima! É como se estivéssemos entre os 20% que conseguiram empreender o “quase” impossível!
Acontece que o erro não é uma ciência exata, simplesmente porque é cometido por seres humanos sujeitos a incertezas, imprevistos, oscilações sem razões predeterminadas ou explicáveis. É essa humanidade, inclusive, que faz com que duas horas de conversa com alguém agradável pareçam uma, em um processo que envolve mais emoção que qualquer outra coisa. Em suma, o tempo é um só, a maneira como você se situa – ou não – nele é que faz toda a diferença. Sendo assim, melhor que se angustiar pela falha é perguntar o que te levou a cometê-la. Mais que isso! Como você reage diante dela, sobretudo, diante das pessoas que de certo modo, foram atingidas por ela. Avaliar essas ocasiões é importante para que a culpa seja leve, isto porque em grande parte dos casos, cedo ou tarde, ela vem, assim como as situações de erro.
Quando as horas escaparem de seu relógio, quando seu dia carecer de mais que 24 horas, feche os olhos, respire fundo e tente se situar em meio ao turbilhão. As coisas vão cair de sua estante, você vai perder momentos importantes, descumprir prazos, decepcionar pessoas. Às vezes as perdas, as ausências, as invejas, as saudades, enfim, as circunstâncias vão fazer isso, desarrumar tudo, deixar a gente à deriva e nos levar a errar. Nessas horas, deixe tudo acontecer, depois se levante e tente arrumar tudo de novo. E de novo, de novo...
Carolina Moraes
 

Marrakech!

Ouço Tom Jobim em meio a crepúsculos drummondianos. As águas de março não vieram por culpa do “El niño”, contrariando as previsões do poeta. E fechando o verão, o que temos é o início de um outro verão perene, pereneando as estações todas, engolindo do outono ao inverno, transformando tudo em quentura, simplesmente. Sem um ar condicionado, ai de mim! Ai de meu cigarro e minhas sestas revigorantes, sempre ao som do Tom, de uma bossa ou coisa assim que me deixe cool, cheia de ideologia, cultura e identidade! Hoje ser engajado, inteligente e consciente é fashion! Por essa razão, o discurso pronto é primordial!  Gosto de me refestelar em minha poltrona “pré-moldada” a meu corpo lipoaspirado e curtir minhas crises baudelairianas como peça sem encaixe de um mundo pós-moderno. Eu, toda out, neocolonizada, atropelada pelas liquidações que passam em alta velocidade, fora do tempo, da grei... Difícil isso! Pensava que viver em pleno século XXI seria mais fácil! Qual o quê! Doidera pura! Às vezes me sinto anestesiada diante de tantos rótulos e tendências! A tendência agora é... E Maria Creuza acusa desesperada, “você abusou... mas não faz mal se eu insisto nesse tema.” Ninguém ouve mais Maria Creuza! Ninguém passa a tarde em Itapoã! Câncer de pele, falta de tempo. Quem é que vadia hoje em dia? E eu já estou bebendo demais, depressiva demais, cansada de nem ser! Meu namorado, o carinha que estou ficando... Tenho quase quarenta anos e me sinto obrigada a falar “o carinha que estou ficando!”. Ouve que ridículo: “o ca-ri-nha que es-tou fi-can-do!”. Se minhas amigas de infância me ouvissem falar assim... Todas bem casadas, filhos bem criados! Diriam: “Analice, que houve com você?” O que houve com você! O divorcio, querida! As velhas traições, a carência de estar sozinha em meu chatô! O que houve! Todo comportamento que foge a regra é ligeiramente censurado com a célebre frase: “o que houve?” Ouvi isso a infância inteira! Estava sozinha com o gatinho do 3º B, “o que houve?”, fugi da aula para ir ao cine, “o que houve?”, estava namorando no elevador do prédio, “o que houve?”, resolvi fazer parte do DA de minha universidade, “o que houve?”. Minhas amigas mais novas se me ouvissem dizer “o carinha que estou ficando!”, também me diriam “o que houve?” Não! Elas ririam da minha necessidade insuportável de parecer atemporal! No fim das contas não me enquadro em lugar nenhum! Larguei o namorado pela terceira vez, recusei o convite para o show, adiei o almoço... Estou fora! Definitivamente estou totalmente fora! Vou ficar aqui “no céu com minha mãe estarei”. Já tentei apelar para a religião, ver se tomava prumo! Católica, evangélica, budista, espírita... Fiquei indecisa! Nada de coisas para confundir mais minha cabeça! No momento, preciso mesmo é de solidão. “Ah! Se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco...” Jhonny Alf! Maravilhoso! Dancei tanto ao som de Jhonny Alf! Eu e Regiane! Íamos às festas juntas, embebedávamos juntas, mas depois de umas coisas mal ditas ela se foi! Pensou equívocos ou não seriam equívocos? Nunca refleti sobre isso! Aliás, nunca tinha refletido sobre nada. Reflexão, só depois dos 35, quando as coisas começam a ter um peso diferente! E depois, esquece! Melhor nem pensar! Mas as ideias ficam amofinando meu juízo! Ai! Adoro essa do Zé! “Eu entendo a noite como um oceano que banha de sombras o mundo de sol”, tão alucinógenas as músicas de Zé! Feito os cigarrinhos que Jonas me dava na época da universidade. Esse até quis casar comigo, mas o Lúcio, aquele desgraçado! Apareceu primeiro, desgraçado. Tinha até a cara bonitinha! Recitava Carlos Drummond como se fosse o próprio! Fui atrás de Drummond e achei noites em claro! “Lição de coisas”. Quando vejo aqueles escritos, cartas e cartas jurando amor shakespeariano. Pai e mãe falando em bom casamento e boa família. Bom rapaz! Tão bom que no primeiro ano de casado, peguei com o advogado transando no jardim do vizinho! Era viado! O sacana hipócrita nem foi homem para assumir! Ganhei uma bolada, tudo pela moral e bons costumes! Chorei horrores! A gravidez de seis meses? Interrompi! In-ter-rom-pi! In-ter-rom-pi! Jesus Cristo há de entender! Se é que existe inferno, o máximo é eu ir para lá! Pior que minha vida sem perspectiva não há de ser! Maisa, “meu mundo caiu”, que chique! Eu aqui, tomando um uísque, odeio uísque, mas é chique! Ouvindo Maísa e deprimidíssima, deprimidérrima, deprimente! O telefone já tocou nem sei quantas vezes. Deve ser o porteiro! Tão preocupado! Acha que vou morrer, o coitado! Só por causa de uns comprimidinhos a mais outro dia! Tem sido cada vez mais difícil dormir, aquele sono gostoso. Queria dormir bem dormido! Mas as ideias! Queria mesmo era ser a Raissa que Lygia colocou no aquário! Quente, irônica, perdida! Mas meu aquário é moderno! Tem ar-condicionado! Graças a dinheirama que Lúcio pagou pelo meu silêncio. Devia mesmo era dizer pra outra mulherzinha dele. Já imagino a cena, a pobrezinha negando, chorando, perguntando “é verdade, Lucinho? Fala que é mentira!” Nasceu pra sofrer, morrer enganada! Desfila com ele como se fosse um primor de macho! E como transa mal! Eu... cheia de verdade e só! É de se pensar se a mentira não vale mais! Mas não importa, falei o que não devia, vi o que não devia, fiz o que não devia! O que está feito, está feito! O negócio é esse! Arre! E os comprimidos que já não dão vencimento. Quero morrer não, mas se esse não fizer efeito, tomo o resto da caixa inteira. Só pra ser encontrada com essa camisola deslumbrante que Cecília me deu! Ia ser chique ser acordada por meu médico M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O! Mas é muito risco pra muito pouco homem! Vale tanto não! Só mais um, e mais um golinho de uísque. Hum, essa mistura não é muito bacana! Mas, parei! Beber por causa de tanta frustração até cansa! E também, dessa vez quero ver tudo, sentir tudo. Vou chamar o porteiro com voz de Ava Gardner, não, Sônia Braga! Deitar no chão, delírio, loucura! E chega desse papo qualquer coisa! Deixa eu pra lá de marrakech! Mexe, mexe!

Carolina Moraes